Um dia de Sunrise - Não é fantasma o morto andante


Gostaria de agradecer a nossa grande leitora Sunrise! Que nos enviou essa crônica mega phoda! (embora ela afirme que não é de sua autoria)
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     Olá.
     Que eco de olá há para bater nestas paredes e então retornar? Nenhum. Não tem ninguém.

     O armarinho debaixo da pia servia de abrigo ao Sancho e àquela baratinha friorenta, estremecia toda quando entrava vento frio pela fresta onde deveria ter um puxador. As prateleiras foram desmontadas; agora eram parte da tranca da porta do armarinho. Lá embaixo seria escuro se o Sancho não tivesse a ideia de por uma lamparina e seria frio demais se não houvesse as colchas. Nos primeiros dias, ainda saía para ir ao banheiro e esticar-se, mas tornou-se perigoso expor-se assim, mesmo que na cozinha da própria casa, pois que depois de sair sentia a carniça de podridão como se os outros o estivessem caçando; e estavam sim. Passou a abaixar as calças no próprio piso da cozinha, quando não achava as sacolas e quando o lixo se enchera e quando as panelas se encheram, deixando sua merda e urina em montes ali. Não se importava mais, nenhum rastro de odor de provocar morte instantânea, de fazer cair o nariz bem decomposto no chão, nada se igualava ao cheiro dos outros cidadãos daquela ilhota gelada, os quais se deitaram para um descanso da normalidade e acordaram adeptos da admirabilíssima e errante pós-mortalidade.
     A televisão não mais transmitia e até tinha o menino tirado o puxador e deixado aquele buraco, por onde o frio passava, de propósito: seu olho em eclipse via a televisão portátil que alguém deixara ligada em cima da mesa. Certo dia, porém, ela pôs-se a chiar por quarenta e três minutos incessantes de dor aos ouvidos de Sancho, até que num chiado maior apagou-se de vez. Agora o atormentava somente o gotejar da torneira martelando a pia: três pingos num mesmo segundo, uma pausa de dois segundos, mais três pingos ligeiros, uma pausa, tic, tic, tic, silêncio, tic, tic, tic.
     Se a televisão não mais transmitia, portanto nem sabia o Sancho que no mundo continental tanto longe daquela ilhota gelada também acontecia a pós-mortalidade fedida, de um significado distante dos prometidos por casas de religião e pela corja contígua, não apenas por causa da fragrância. Era que eles, assim como andava fazendo seus parentes e a moça de melena prateada, comiam miolos de gente que ainda seguia a dieta tradicional onívora. Tão indiferentes. Sancho, com o ócio de verdade e com companhia de uma baratinha cascuda e com as gotinhas tamborilando o ralo da pia sobre sua cabeça e suas dores nas costelas por estar emborcado, encenando o homo que houve semelhante aos macacos, tinha medo daquela indiferença.
     O medo o digeria à noite. Poderia estar na cama macia, esticado, sonhando, caso os pais, na madrugada em que começou o distúrbio, não tivessem chegado com excessiva esquisitice depois de uma festança de gala. Entre o paletó do terno e o vestido de lantejoulas, para que tanto sangue e cabelos e bifes, para quê? Tinha uma tortuosidade insana no pescoço deles, uma baba nos maxilares esticados, um oco nos globos oculares, um requebrado feio de ancas quebradas. Tinha um hálito de funeral atrasado na boca deles, um beijo de boa noite faminto, que o acordara de chofre e o fizera saltar pela janela para os arbustos do jardim. E no jardim, assim como na rua depois da cerca, uma marcha de homens meio mortos, meio canibais, prosseguia ritmada.
     Ninguém além do Sancho via o fundamentalismo naquela situação: assistir aos rostos esfomeados passarem da comunhão dos conotativos corpo e sangue ao literal corpo e sangue e vísceras de gente. Havia lugares em que se tapavam mulheres com flanela dos pés ao cocuruto. Havia lugares em que não se matava vacas; outros onde se jejuava um mês inteiro, e a fome, culpa dos consumidores ricaços dos países da parte de cima; lugares onde gente fazia procissão daqui até bem pertinho, uns poucos milhares de quilômetros, a pé; e ainda existiam os que repetiam dezenas de vezes as mesmas sentenças antes de dormir, como se acometidos por uma neurose despercebida. Começava a passar do limite, não é, Sancho? Sim, ele responde. Sim, sim, sim. Pausa. Sim, sim, sim. Seus pensamentos seguiam o compasso dos respingos da torneira na pia.
     Um barco. Queria remá-lo e ir para o meio do azul marítimo. Acordou à noite e viu a baratinha esmagada sob seu braço. Sentiu o ímpeto de enfiá-la na boca, porém recusou. Há quanto tempo não comia? Tinha medo de abrir a portinhola e pegar o pedaço de maçã que tantas moscas já dividiam ao lado do escorredor de macarrão caído no chão. Que medo de aparecer um monstro daqueles olhando-o pela janela. Saiu, porém, do armarinho. A atmosfera da casa, uma desgraça. Não conseguiu levantar-se: os ossos da coluna haviam-se calcificado para sempre curvados. E foi tão rápida sua corrida atravessando a cozinha, fazendo as mãos de pés também. Pegou a maçã com a própria boca, vieram juntas quantas moscas. Voltou em dois segundos, batendo a madeira da portinhola e trancando-a. A maçã desceu a goela já pedindo para retornar e retornou com um gosto pior do que antes. Ao passo de meia hora, aconchegou-se no nariz de Sancho aquilo que era a seguinte mensagem: eles estão ao redor da casa.
     Ao redor da casa, existia um mundo inteiro de mortos e vivos e toscos antropofágicos à espera de uma porção dos músculos imaculados que eram os de Sancho. Mas ele, que viveu por muito tempo somente à luz fraca da lamparina, embaixo da pia cuja torneira não parava de gotejar, tapando o nariz e recusando a adaptar-se ao tipo, um pouco doente dos olhos, cego, saiu da sua caverna, apoiou-se na beira da mesa, esticando-se o máximo que pôde até os ossos estralarem e se quebrarem em certas partes, deu um passo e mais outro em direção à porta dos fundos e abriu-a.
     Veio uma brisa cálida, talvez pelo fedor que a pinça que fez com dedos no nariz o impediu de sentir. Não houve grito demente ou movimento brusco, como Sancho esperava. Ficou parado na soleira da porta vislumbrando as figuras obnubiladas movimentando-se. Seriam árvores balançando ao vento? Seriam nuvens negras de chuva, carros? Ou seriam os outros, os esfomeados? Não sabia, pois gritou:
     Olá.
     E não houve resposta, porque que eco de olá haveria para bater nestas paredes e então retornar? Nenhum. Não tinha ninguém.
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Ps: Não é comum fazermos isso, postarmos textos que não são nossos em dia de semana, mas esse texto ficou tão bom que achei que merecia destaque e, por motivos que não passam de preguiça, o Alisson não pode postar hoje.

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