Como dar adeus

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Você vacila. Seus dedos trêmulos na última página. Seu foco de visão se demora naquelas palavras, sua periférica se apaga, pois não há coisa e vida e mundo, salvo tudo que mora no livro em sua mão. Num segundo, você lê a letra maiúscula que começa o derradeiro período do também derradeiro parágrafo. Noutro segundo, você lê o ponto final. E tenta tirar o máximo de informação possível daquele pingo de tinta para não admitir que não exista nada mais a ser lido, acabou.
E então, o desamparo. Se for forte bastante, dá um suspiro. Mas se for homem de verdade, dá uma chorada daquelas soluçantes. Você fecha o livro, fecha o olho, reza por todas as personagens que faleceram na sempre épica batalha final, quando a há; lembra-se de todas as histórias, das vezes em que teve de ir ao dicionário para aprender palavras novas, das vezes em que seus olhos bateram no conjunto de letras ali e seu cérebro reagiu com gargalhadas, com careta de nojo, até com choro!
Quando abre o olho, vê o quarto, vê a janela com todas as fiações e céus e telhados dos vizinhos em seu quadriculado. Ouve os burburinhos da vida de verdade denunciando a inexistência daquilo que mal se foi e você já sente saudade. É tão óbvio e tão chocante quanto frustrante saber que não existem as situações, as pessoas, o universo, imagens das palavras escritas atrás do último ponto final.
É mau.
Não comece uma série. Nunca. No presente passageiro durante a série, é lindo: você vai para escola e tem mais um assunto para conversar com seu colega, tem mais um pensamento para batucar a cabeça antes de dormir, se empolga todo. Agora, ao terminar, o invés: você pode se tornar mestre em gramática só por definir na maior e mais exata expressão o termo nostalgia.
Tenho uma amiga que terminou uma série de livros e escreveu uma carta ao personagem principal para fazer diminuir a solidão. Quanto a mim, que está na véspera da conclusão da mesma série, a qual eu comecei aos dez anos, não consigo produzir nenhum campo artístico, não sai. Eu não podia ter feito isso: após ler sete anos da vida de alguém e seus amigos, não acho modos de dar adeus, nem acho a quem. Ergo a cabeça, vejo a estante na parede, os sete livros no lugar mais alto. Dentro deles... eu queria estar dentro deles, que eram a mais sadia e lícita anestesia da realidade.
Pressinto que vou ficar velho e, sempre que der uma olhada naqueles títulos que ficaram com meus pedaços depois de lidos, um arrepio tremido nem um pouco parecido com Mal de Parkinson vai percorrer meu corpo de ponta a ponta.  


Um conselho: jamais resolva ler Harry Potter no mesmo período que tiver terminado o ensino médio e terminado de assistir ao seriado Lost: dói.
Um agradecimento: Bianka, brigado por escanear.

5 comentários:

  1. Cara, como eu consigo me identificar com isso! Mas não se pode dar esse conselho a alguém, não comece uma série. O jeito é começar e acabar e começar de novo. Olha que filosófica maneira de relacionar vida e séries!

    É, foi bem triste perceber que Lost tinha chegado ao fim...

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  2. Kaito, eu chorei, de novo e sempre. Consegue entender agora as palavras da tal carta. É tão triste, tão nostálgico e dolorido que não acho mais palavras pra descrever. E é bem verdade que sempre sofro com séries e vou me afastar o máximo delas porque eu não gosto de finais, mesmo sendo inevitáveis. Conseguiu resumir tudo o que senti e ainda sinto. Seguir...

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  3. é incrível! maravilhoso! colorido e divertido.

    sempre tem mais depois de um ponto final-final:
    sempre vejo *espaço-naves atravessando a rua depois de um belo ponto final. vejo também *vacas (as irmãs!) caídas sem conseguirem se levantar depois de um feio ponto final..
    o intrigante é que sempre é um ponto e depois dele, tem toda a idéia do escritor e do leitor pra ser analisada: -entre. sente. tome um café, vamos conversar!

    o fim nunca acaba. ele continua sendo o fim até o fim!

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  4. laura palmer, mesmo que morta no final, tá sempre no meu coração. ._.
    e a cada dia que passa, penso mais e mais nela. e tento então entender o porque de suas escolhas. e depois, aplico essas escolhas (ou o contrário dessas escolhas) na minha vida.

    vale a pena continuar lendo um livro, assistindo um filme, ouvindo uma música, comendo uma comida, caminhando numa rua, amando uma pessoa, costurando uma roupa, pintando uma tela, mesmo depois do ponto final. realmente vale a pena!
    sabe o que mais vale a pena? desapego material! uuuuh~~~~ esse vale mesmo a pena!

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  5. A saga nos envolve, nos enlaça e nos leva aos mundos perdidos da existência daqueles que passaram a existir em nossos corações, passamos por portais e chegamos a mundos desconhecidos todas as vezes em que abrimos uma página e começamos a ler.
    A saga Harry Potter fez, faz e fará parte de minha vida, ela rompeu barreiras, alastrou-se de uma forma que não há como definir.
    O mundo da literatura nos faz viver de uma forma que não podemos controlar o resultado...

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