Quando o ônus não vale o bônus


                E o céu era, ele todo, cinza. Chovia fino e gelado, dessas chuvas de fazer molhar aquele que acha ela apenas garoa. E el contemplava os corpos, e eram muitos, pareciam milhares. “E mil cairão ao teu lado, e dez mil à tua direita”, “mas tu, desafortunado, tu continuaras de pé, tua desgraça será não ter morrido, pois todos lhe perguntarão ‘que é que se passou aquele dia, naquele lugar?’ e você terá de contar, com lágrimas nos olhos o sangue que viste e as mortes que contara”; o céu que era cinza e os rostos amigos que se mostravam apáticos, não vívidos, frios e mortos colados ao chão. Ao meu lado os tais polícias caminhavam, de armas empunhadas e frontes marmorificadas, verificando se os corpos ainda se mexiam, ocasionalmente, quando tal ocorria, rapidamente disparavam contra ele, como se o próprio representasse uma ameaça, ou como se o fizessem por deboche.
                O chão era lamacento, custoso de pisar, danoso aos sapatos. A casaca, apesar do frio, se mantinha debruçada sobre meu braço. A vontade era de ir embora, de sair daquele lugar, mas forçavam-no a ficar. Sentia uma agonia intensa por dentro, desabou chorando. Chorava desesperado, ele havia delatado os amigos, lhos havia delatado por uma ninharia, tal qual Judas, mas este ainda teve a sorte de achar uma árvore no caminho, esta que lhe propiciou suicidou levado a bom fim, mas não ele, ninguém sabia de seu feito, mas o que era o olhar inquisitório do outro em comparação à repulsa que seu próprio coração sente de ti? Nada. As lágrimas escorriam enquanto os polícias vasculhavam os corpos, ele se ajoelhou no chão, tocou em um pedaço de carne fria, ao virar o cadáver, percebe que conhecia aquele sujeito, e ao tocar nele mais uma vez, este retribui o toque, então ele percebe, para o agrave do desespero, que aquele ainda estava vivo.
                _ Você... você viveu... – sussurra o quase morto.
                Sem saber o que dizer, ele apenas chora, queria dizer algo, queria se desculpar, pedir perdão, mudar as coisas, mas nada sai, e, caso tivesse intencionado sair, pouco tempo também teria, uma vez que um polícia que ele não viu se aproximar finalizou com um tiro entre os olhos o devaneio do condenado. Sangue para na maçã do rosto do nosso covarde.
                Que culpa tinha ele? Eles já estariam massacrados de qualquer forma, naqueles tempos a repressão estava ainda maior, que mal havia em passar para o lado vencedor? Ele associava o benefício à antipatia que sentia por alguns membros do grupo e tinha o desenho perfeito na cabeça: dormir sem medo de não acordar, acordar sem medo de não passar fome, comer ser a perturbação de gente falando sobre o passado e como ele era bom, e poder deitar-se despreocupado de funções chatas e que só lhe toliam o potencial. CHEGA.
                Mas nunca tinha passado disso, nunca passara do roteiro, da conjectura, das suposições, dos devaneios. Até a briga, até o dia em que caçoaram dele e fizeram dele chacota, até aquele infeliz dia em que o líder do grupo se referiu a ele com um tom jactancioso e jocoso. Foi neste mesmo dia que, durante a noite – ou seria dia? Nesses tempos o céu era deveras comediante – ele se dirigiu ao lugar onde sabia poder vender o que tinha de reportes, e foi por isso bem pago. No outro dia não havia ninguém para contar histórias. Então se lembrou que não conhecia ninguém, não havia ninguém com quem curtir os louros da traição, nem para quem contar, nem quem lhe pudesse repreender, nada, ninguém. Eles pagaram a ele o combinado pela tarefa, mas só cédulas não trazem de volta certas coisas.
                E então voltamos ao presente, que é o início deste relato.

Um comentário: