SOMA


                Se, algumas vezes, e estas não são poucas, nos perguntamos se a ficção inspira a realidade ou o contrário; talvez Aldous Huxley fosse um grande profeta ou criador de alegorias. Em Admirável Mundo Novo, obra literária de certo status, temos um mundo onde seres humanos são produzidos em laboratório com níveis intelectuais predeterminados, para atender a demanda de funções na sociedade. O sexo é uma das únicas atividades extras permitidas, e é inclusive encorajada, desde que com a maior rotatividade de parceiros quanto for possível; e há também o SOMA, uma droga produzida para entorpecer os viventes, para lhes fazer relaxados e passíveis a tudo e todos.  Não tendo vivido a época de produção do livro, nem em sua localidade espacial, não sei dizer se alegoria ou profecia, mas, em qualquer dos casos, a reflexão nos deixa boquiabertos. Vou pela segunda, profeta.
           Dir-se-ia, qualquer leitor do livro mais tocado emocional ou conscientemente, chocado; que o livro é bruto, que é perturbador, que é cruelmente genial, mas talvez poucos dissessem com real convicção, fora os sensacionalistas que pegam resenhas online para dizerem-se politizados, que a alegoria de Huxley representa o hoje. E a mim, e penso não ser da classe dos inteiramente alienados, é isso que é, um espelho fosco do contemporâneo. Um pouco jactancioso seria dizer que se compreende a fundo exatamente o que o escritor quis passar, a arte tem dessas coisas, a interpretação; principalmente quando vêm as discussões, daí parece haver permissão para uma queda livre em abstração. Mas creio que este livro, talvez pelo sucesso que fez e faz e pelos inúmeros estudos sofridos, já tem bem esclarecidos os intentos do autor. Não que isso desmereça a interpretação de alguém, tão pouco elimina a possibilidade deste papo de profecia ou alegoria ser apenas anedota e as páginas desta obra nada mais serem que um tiro no escuro que, por sorte, acertou a cabeça de alguns.
          Mas enfim, me parece cada vez mais que nos entorpecemos em SOMA e sexo descompromissado e nos esquecemos do inferno a nossa volta. Não sou dos defensores “da moral e dos bons costumes”. Mas essa moda instaurada, esse hábito da curtição, do apenas por farra e da exclusão dos relacionamentos nos leva a um caminho, cada vez menos intimidade, cada vez menos diálogos cotidiano, ou, se estes existirem, por mera fatalidade, estarão de início já buscando o fim, e terão a profundidade de pires em que se dá leite ao gato. E o soma, essa cultura do tudo muito rápido, do tudo para entreter, do tudo para passar o tempo, do tudo cada vez menos “pedante”... estes são os SOMAS, tudo feito para provocar o esvaziar da mente, tudo feito para não provocar nada no leitor, nada além do entorpecimento. É nesta reprodução de frases pífias, como: não tenho “saco” para isso, que filme chato, que música cansativa, que livro difícil... nisso caindo, abdicamos do nosso cerne, e assinamos o termo que diz, somos gado, gado e ferramenta, os que a isso não se rendem, e por alguma razão a grande maioria deve ser perversa – não que estes sejam onicientes, também são igualmente estúpidos e rendidos – nos controlarão e manusearão consoante a vontade, a vontade e o bolso. E nós, nós seguiremos, cordeiros que somos.

5 comentários:

  1. Ian, tenho que admitir que esse foi um dos melhores textos desse blog. Eu li Admirável Mundo Novo e fiquei fascinado pelo tanto de ideias convenientes e o quanto tudo pode ser aplicado atualmente, como você demonstrou tão bem.
    Eu tenho minhas análises a respeito, um pouco parecidas com as suas, mas jamais conseguiria explicar tão graciosamente.
    As pessoas se renderam ao fácil, o difícil é... difícil demais, então, melhor se contentar ao mais prático.
    Parabéns!

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    1. Não sei se diria que este é um dos melhores, mas que bom que você gostou... : ), tenho certeza que sim, você conseguiria expor as suas concepções acerca do livro facilmente...

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  2. Sei não, viu. Vai me dizer que os casais de "antigamente", tão íntimos e cúmplices, debatiam as agruras da vida e maquinavam formas de escapar da opressão? Acho que não, que são só formas diferentes de estar rendido.
    O mundo não vem ficando pior, não vem ficando 'menos intelectualizado'. Eu me arrisco inclusive a dizer que é exatamente o contrário. Dá uma olhada na superpopulação desse planeta: as coisas são mais intensas, mais de massa. É uma questão de proporções, temos mais imbecis, mas também temos mais gênios.

    E liberdade sexual, extinção do tabu do compromisso imprescindível e opções mais abertas não são coisas ruins.

    Esse vasto, vasto mundo tem ficado melhor, não pior.

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    1. vê com bons olhos então uma perspectiva não monogâmica, Mr. Marco? Você não crê que, quanto mais você troca de parceiros, menos intimidade tem com eles? Não falo de promiscuidade no texto, não digo que é ruim não se firmar com alguém porque isso fere "alguma" moral... digo apenas que, de um ponto de vista puramente matemático, quanto menos tempo você passar com um pessoa, menos terá intimidade para dialogar com ela sobre o que quer que seja, uma vez que a relação é calcada em um ponto estritamente sexual. E eu também não disse no texto, em momento algum, que o hoje é pior que o ontem, só disse que o livro, do meu ponto de vista, retrata bem algumas coisas do hoje.

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    2. Essa intimidade precisa ser necessariamente com parceiros sexuais? É nisso que acredito: que a pessoa procure ser feliz, seja com um homem, uma mulher, um brinquedo altamente verossímil ou só.

      Verdade, retrata coisas do hoje. Mas também do ontem.
      Só não gosto dessa conversa tão comum de dizer que a "sociedade tá perdendo a cultura, é tudo massificado, é o funk, é a novela, é caralho a quatro".

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