Por que você
não se parece mais com todo mundo? É tão diferente, tão distante. Não sei se os
anos passaram e eu perdi toda memória que tinha do seu rosto, não sei se as
fotos ou as conversas recortadas que os outros mantêm a seu respeito são suficientes pra fazer com que aquela fagulha continue viva. Vai ver é isso. Eu que
guardo lembranças mofadas e desde então você cresceu, você mudou e agora é como
todo mundo. Mas quer saber? Eu duvido. Você nunca foi nem remotamente como todo
mundo e não vai ser jamais. Você tem aquele brilho azulado, melancólico, bonito
até de se ver. Quase ninguém mais o tem, sabe, não esse genuinamente azul,
fervilhando de sentimentos – amor, mágoa, vontade, saudade, empatia.
Por que você
não aparece mais? Eu sei que é hipócrita, você nem sumiu, não de verdade. Eu
escondi você, num buraco quente de alguma válvula cardíaca. O que é peculiar
sobre coisas escondidas nas válvulas cardíacas é que, devido à natureza
muscular e pulsante desse órgão, elas voltam à tona, por um caminho ou por
outro. A sístole a leva ao cérebro, ao lobo qualquer coisa que tem a ver com a
memória, e dói, eu quase consigo ver os pequeninos hormônios – que me aparecem
azuis, por algum motivo desconhecido – se espelhando pelos meus membros, pelas minhas
células velhas que não se cansam de se multiplicar. A diástole, na tentativa de
arrastar de volta pra dentro do coração essa coisinha que eu escondi, não tem
tanta força assim, e o negócio todo fica entalado na minha garganta. E é pra
sempre, esse ciclo é eterno, como você deve ter deduzido, já que eu respiro e o
meu coração bate e você vai e volta. Bem, meu coração não vai bater pra sempre,
quem sabe aí...
Por
que você me deixa ser como sou? A culpa é toda sua. Você sabia que eu era
fraco, você sabia que eu não era deus. E ainda assim ficou, sem fazer nada,
assistindo a minha queda, metro por metro, grito por grito. Ah, vá embora
praquele lugar escuro, claustrofóbico e ensanguentado. Lá é sua casa agora. Mas
quer saber de outra coisa? Eu quero mesmo é pedir desculpas. Fui eu que me
afastei de você e fui eu quem fez dois o que antes era só um. Nós
compartilhávamos tecidos, órgãos, fios de cabelo, um corpo inteiro mesmo; mas aí
eu tentei expurgar você, tomei veneno, coisa assim. E você não saiu de mim. O
pior foi isso, você não saiu e alguma outra coisa vital ficou estragada,
morreu. Eu sei que desculpas não contam pra nada, nem limpam sujeira, mas elas
ajudam a quem as pede. Que minhas desculpas a você sejam que nem aquele tipo
bom de colesterol, e evacuem minhas artérias. Mas, sei lá, meu coração bateria
descompassado se fosse evacuado.
You see, we're all trying to endure. You could easily go and make your
own life somewhere.
Eu poderia fazer minha vida em outro lugar, você também poderia. Se
calhar do lugar ser um só, ah, que calhe.
(A música é Amy in the white coat, de uma banda linda que se chama Bright Eyes. Ouça, se você quiser ser mais azul ainda).
(A música é Amy in the white coat, de uma banda linda que se chama Bright Eyes. Ouça, se você quiser ser mais azul ainda).
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