Foi-se


                A sala é vazia, nada alem de uma mesa, duas cadeiras, um papel, um lápis e ela, ela e sua foice.
                __ Então, por quê mereces viver?
                Não me lembrava de como cheguei ali, quando me dei conta já estava sentado à mesa. Ela faz uma cara maliciosa, como se... bem, como se tivesse vislumbrado uma jogada auspiciosa em uma partida de xadrez
                __E então? Por quê?
                Não sabia o que falar, nem sequer sabia que tipo de ocasião era aquela. Arrisco:
                __ Que pergunta absurda é essa? Como assim “porque mereço viver”.
                Ela faz uma cara deboxadamente impaciente, como se estivesse diante de um retardado que não consegue discernir a mais óbvia das situações.
                __ Eu realmente tenho que ficar detalhando tudo? Bem, você foi atropelado, é isso, neste momento os médicos estão tentando lhe salvar, tentam com o descaso típico, seu coração está parado a aproximadamente 1 minuto, o que não importa, o tempo que você vai demorar aqui não é inerente às vontades médicas.
                __ E você, seria?
                __ Bem, embora eu tenha a infinidade para lhe contar as coisas, não me apetece ficar lecionando pra você. E então, PORQUE MERECES VIVER?
                __ Em vida fui uma boa pessoa, além...
                __ Dê-me um exemplo para ilustrar essa “boa pessoa” que você diz ter sido.
                __ Ahn? Bem... Eu... Eu... Dei a melhor das criações a meus filhos?
                __ Mesmo que seja verdade, não fizeste mais que obrigação, os filhos não pedem para nascer, você os concebe por querer, claro, há casos acidentais, mas mesmo nestes, a obrigação é sua.
                Nesse momento ela puxou uma das gavetas da mesa e colocou a mão lá dentro, era bem mais funda do que aparentava, ela enfiou quase todo o braço lá dentro. De lá retirou uma pasta, folheou-a indiferentemente.
                __ Tem algo melhor para expor?
                __ Fiz doações à igreja.
                __ E a quem ajudaste ao fazer isso? Ganhaste prestígio, vislumbrou com alegria o olhar de cobiça de outros fiéis, esse tipo de ato repuginante, mas ninguém, NINGUÉM, deixou de passar fome ou frio por causa desta sua ajuda.
                Estava começando a ficar inquieto e nervoso.
                __ Pelo visto posso fechar o seu relatório, parece que você não tem escapatória mesmo. Enxerga a porta atrás de mim? Quando aberta, a única alternativa é entrar na sala que ela guarda, abri-la-ei agora.
                __ ESPERE! Por favor! O que... O que irei encontrar lá?
                __ A mesma coisa que vês aqui: Uma sala. Dentro dela uma mesa, um lápis, uma folha e três cadeiras.
                __ Três?
                __ Lá são duas pessoas a fazer perguntas. Aqui você “decide” se fica ou se morre, lá você “escolhe” um dos locais para ir, na verdade existem outras opções, mas só para casos extremamente raros.
                Ela deu uma discreta olhada para o lápis e papel.
                __ E então? Última chance, se não disser nada que me convença, terei de enviá-lo à próxima sala.
                Comecei a chorar, a entrar em desespero.
                __ Ohhnn, que triste, mas isso não vai lhe ajudar. Nem sei por que esse desespero todo, morrer não é de todo ruim. Sabe como é, se você foi legal como diz, talvez as pessoas se lembrem de você positivamente.
                __ Ainda tenho coisas a fazer... – Disse entre um pranto e outro
                Ela se levantou, bateu muito forte com as mãos na mesa. Seus olhos estavam vermelhos, não de fúria, mas de repugnância.
                __ COMO OQUE? DESTRUIR OUTRAS VIDAS? TERMINAR DE ACABAR COM A VIDA DA SUA ESPOSA? POR UM FIM DEFINITIVO À ESPERANÇA DOS SEUS FILHOS DE TEREM UM BOM PAI? O QUE MAIS? AHN?!
                Ela, instantaneamente, sentou-se, deu um sorriso irônico como se não tivesse feito nada, como se nem tivesse saído do lugar.
                __  Não é bem assim... eu posso tentar consertar as coisas.
                __ Ohhh, concertar você diz. E como é que fará tal proeza?
                __ Melhorando, revendo meus conceitos, sendo uma pessoa melhor.
                __ Uhn... – ela me olha com um olhar duvidoso – Certo, parece-me um bom motivo... deixe-me só consultar alguns papeis aqui.
 Tornou a abrir a gaveta. Instintivamente peguei o lápis, por algum motivo fiquei morrendo de vontade de escrever algo naquele papel.
__ NÃO TOQUE NISSO, não é para você. Certo, consultei os protocolos, claro, mera formalidade, eu já sabia, desde o instante em que te vi, o seu destino nessa “seleção”. Você vai morrer.
__ Oque?! Não poderei mudar as coisas? COMO ASSIM?
__ Se não tivesse entrado aqui, se não tivesse sido atropelado, se não tivesse me encarando neste instante, se não estivesse com o peso da “dívida” nas suas costas, jamais pensaria em reconsiderar, então não há porque voltar.
Tive um acesso de ódio, levantei da mesa, peguei a cadeira, joguei-a na direção daquela estranha mulher, mas, quando tornei a olhar, a cadeira estava no seu exato lugar, fixa no chão como se nunca houvesse sido tocada.
__ Vocês, pessoas, têm um sério problema – Ela fez uma cara de tédio – Vocês sempre esperam alguma merda muito grave ocorrer para tentar mudar as coisas, porque é que vocês não fazem as coisas certas desde a primeira vez? Você não morreu por causa desse acidente de carro, para a maioria das pessoas que você conheceu, você já havia morrido, era como se fosse um fantasma a importunar, a atormentar a vida de todos, você era um encosto e nunca fez nada para mudar isso, era cômodo pra você, e agora é hora de ir para a próxima seleção.
__ NÃO! EU NÃO POSSO! EU NÃO QUERO
__ Essa decisão não cabe mais a você.
E assim ela me pegou, me pegou pelos cabelos, e me arrastou até a porta, com a mão ergueu a enorme foice, com ela deu um pequeno toque na porta, ela se abriu. Foi-se
__ Adeus.
E assim eu me fui. Antes da porta se fechar, ainda pude ouvir ela falando.
__ As pessoas não entendem que certas coisas não podem ser resolvidas depois que já se fudeu tudo.

***
Na sala de emergências do hospital, um homem acaba de falecer. Os médicos estão em volta da mesa. Frios. Nada de mais, só mais um dia de serviço que não acabou tão bem como poderia. O morto tinha uma cara de horror, terrivelmente desagradável de se ver.
__ é, vou pra casa. Vocês ai, avisem a família – Disse o médico a alguns “vermes” que ali estavam.
Nada de mais, só mais um dia de serviço no hospital do Centro.
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Ps: Se não entendeu esse lance final de vermes e centro, leia meu post "O Peculiar Centro".
PPs: Parabéns à seleção Brasileira. 4x2 no Equador \Õ/
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Gostaria de deixar um "Extra". Recentemente conheci um projeto fenomenal. Trata-se de uma série de Ficção Cientifica/Política de origem NACIONAL! E não é daquelas coisas trashs não, gostei muito do roteiro, da ideia (que não achei muito manjada), e da atuação. A série chama-se 3% e seu Piloto está disponivel no Youtube. Segue abaixo a primeira parte. (a partir desta, no youtube, você encontra as outras duas.



Divulguem esse projeto, pessoal. É sempre bom quando o nosso país produz algo assim.

3 comentários:

  1. Parabéns pelo post!
    Um conto muito bem escrito e uma bela iniciativa de divulgação =)

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  2. Muito bom o seu conto! Começando pelo criativo título. Hehehe. Dá até pra fazer um curta com ele.

    :-)

    O piloto da série 3% também é muito bom. Temos que espalhar. Só assim pra alguma emissora patrocinar e conseguirmos ver o desfecho.

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  3. Ah, seus textos estão cada vez melhores *-*. E olha que estou acompanhando desde o primeiro post :D

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