Madrugada


                Ligo a tevê. É sempre um saco acordar no meio da noite, agora muito provavelmente eu não consigo mais dormir. O pior de tudo é o dia de amanhã, que na verdade já é hoje, mas é que pra mim o dia só começa quando é de manhã... retomando: O pior de tudo é o dia de amanhã. Quando não se dorme direito, você passa o dia nem dormindo nem acordado. E a sensação de desconforto, de cansaço, é quase insandessedora. Que se foda, se for o caso eu tomo um café.
                A tevê é a cabo. Pulo um, dois, três canais: pornografia. É sempre bom uma pornografiazinha para relaxar a cabeça e os músculos. Quem sabe “brinco” um pouco e, pelo cansaço, não acabo pegando no sono? Brinco. A brincadeira acaba rápido, o sono não vem. Merda.
                Continuo pulando os canais. Noticiário, Plantão de notícias da madrugada. Quem é que assiste noticiário numa hora dessas? Penso em fazer uma censura suja a esse tipo de gente, mas percebo que me tornei, a partir de agora, um deles, então me sinto mal falando mal de mim mesmo, logo desisto de fazer a censura, o que só me faz pensar que a censura humana é uma das em que menos se pode fiar, mas recordo-me que somos os únicos seres capazes de fazê-las, nós e Deus, mas de Deus não espero tal, se ele quer fazer censuras talvez devesse praticá-las olhando-se no espelho. Retomando: Assisto o noticiário:
                “Idosa é presa na travessia da fronteira do Brasil com o Paraguai.
                A senhora Doutrina é presa por contrabando. A dita senhora passava toda semana por esta barreira policial em uma motocicleta com um pacote suspeito na garupa. Pela sua já avançada idade, os policiais de nada suspeitavam e nunca a abordaram para saber o que carregava no dito pacote. Eis que um dia um Don Juan da lei decidiu averiguar o conteúdo da carga, era um saco com areia. Nada de ilícito ou improcedente, ‘boa viagem, senhora’ disse o Don Juan, mas ainda sim estava ‘com a pulga atrás da orelha’, como mesmo disse. Eis que uma semana mais tarde a velhinha passa novamente pela barreira e ele apercebe-se de um fato curioso, a senhora portava o mesmo saco de areia, mas a motocicleta era diferente. Ao comentar o fato com os parceiros de turno, afirmaram-lhe não terem percebido o fato, mas que, agora que ele dizia, era bem verdade. Senhora Doutrina contrabandeava motocicletas furtadas para o Paraguai...”
                Troco de canal, que idiotas, tiraram um ladrão, mais precisamente: uma ladra, das ruas. São burros ou o que? Já dizia um samba antigo que eu não me recordo o nome, o ladrão fomenta a economia: Dá emprego ao carcereiro, ao delegado, ao policial; fomenta o comércio também, já que tira coisas indispensáveis das pessoas, fazendo assim com que comprem novamente. Se eu fosse dono de loja seria rico; penso comigo mesmo; colocaria a uma quadra de distância um paisano pronto para levar o estimado produto das mãos das pessoas, ele os traria de volta para mim e eu revenderia o mesmo produto eternamente para as mesmas pessoas desesperadas em tê-los. Genial. Acho que vou vender esta ideia. Quem é mesmo aquele cara que vende ideias? Eite? Eike! Eike alguma coisa... Esse é outro cara inteligente, enquanto todo mundo desperdiça conselhos dando-os de graça, ele vende os seus, e caro.
                Troco de canal, Family Guy, vômito norte-americano. Humor apelativo e pouco coeso, seu senso cômico parte da presunção da vulgaridade do espectador. Só porque gosto de me divertir um pouquinho com pornografia explícita não significa que podem me servir isso e chamar de entretenimento, não senhor...
                Controle-remoto em ação. Missas. Como eu odeio missas. E todos os seus sinônimos, que não sei nem em que caso se aplicam: Rezas comunitárias, cultos, procissões, miseribilismo... Já dizia um intelectual famoso do qual na me recordo o nome: “O mundo só terá paz no dia em que o último Rei for enforcado nas tripas do último padre”. E adicione ou substitua em “padre” qualquer sinônimo equivalente para outras religiões, contribuição minha para a frase. Naquela época a única igreja que era legal de se atacar e, com isso, ganhar algum prestígio era a Católica, as outras eram cachorro morto e fora de combate. Depois que viram a rentabilidade do negócio resolveram entrar no business.
                Já é tarde, ou melhor, cedo. Minha mulher dá uma espreguiçada e pergunta por que estou acordado. É aquela pergunta meio dormida que, independente da resposta, não vai alterar o humor da entrevistadora, tão pouco perturbar-lhe o sono ao qual já eminentemente retorna. Deve estar nos braços de Hipnos, o tal Deus do sono; sinto inveja, agora ela deseja mais Hipnos do que eu. Me pego surpreso, uma vez que “bati umazinha” vendo pornografia quando poderia muito bem ter chamado minha esposa para um “bom & velho entra-e-sai”. Acho que é que nem a música do Pink Floyd “’cause i have grown older, and she has grown colder...” E nada tem mais aquela velha graça. A bunda já não é mais tão formosa como em outrora; Os seios já anunciam queda em progressão geométrica; o sorriso já não é mais radiante; o olhar já não é mais vivido como em tempos não tão distantes assim... Eu também não posso me isentar da culpa: Meu cabelo já nasce só da metade da cabeça para trás; a cerveja me propiciou boas horas de regozijo, mas também me deixou uma saliente barriga; meu desempenho também caiu. Claro, nada disso digo a ela. Afinal, mulher não tem que se preocupar com essas coisas, mas sim os homens, nós é que regulamos a aparência delas, não elas as nossas.
                Troco de canal, filme de terror, ou horror, nunca soube a diferença, embora saiba que haja uma. Quando firma-se a tela, levo um susto e bato meu pé com gota na lateral da parede. Meu rosto ruboriza-se a equiparar-se a mais rubra das rosas. Seguro-me com todas as forças para não urrar de dor. A muito custo a dor passa, fica só o latejar da batida, mas este já é costume.
                Mudo de canal. Um homem a queixar-se da vida, parece um filme, e de comédia:
                “Ocorre, meu bem, que levanto todo dia muito cedo – diz ele, com cara de coitado.
                Cedo, meu bem? – retruca ela, incrédula – Mas cedo que horas?
                Bem, costumo levantar-me assim que o galo canta, por volta das cinco da matina, o sol ainda nem está amostra. – diz ele com sorriso triunfante.
                Nossa! – diz ela, espantada – não sabia que trabalha tanto.
                Oras! Deixe disso, onde já se viu começar a trabalhar tão cedo? – diz ele, fazendo o pre-call da piada – Levanto às cinco, alivio a bexiga em típica urinada matinal e volto ao sono...”
                Risos da platéia de estúdio. HÁ HÁ HÁ!
                Revirando os olhos de tédio, passo ao próximo canal. É um canal de entrevistas, deste de famílias pobres e coisas assim. Um casal contava a história de um morto que havia voltado à vida durante seu velório. Perguntaram quais evidências tinha o casal do fato. A moça disse que, de repente, o coração do morto começou a palpitar tão forte que erguia levemente a camisa. Mais tarde, depois de muitos comerciais de cerveja e promoções de eletrodomésticos, a apresentadora do programa revelou que, na verdade, tudo não passou de um engano, nem havia como o morto voltar à vida uma vez que, quando se vai enterrar o falecido, drenam-lhe os “líquidos” do corpo para evitar mau cheiro. Ocorre que durante o velório ocorreu uma falta de luz na casa, então ligaram uma extensão na casa vizinha e puxaram uma única lâmpada perpendicularmente ao morto para, assim, poderem lhe prestar as devidas últimas homenagens. A lâmpada era incandescente, as pessoas não se aguentavam alguns minutos em baixo dela e já se viam empapados em suor. Em um momento de distração, um sorrateiro besouro que voava por ali pousou no pescoço do morto e adentrou-lhe a camisa. Em virtude da habitual fatiga que se vê nos insetos, tentava desesperadamente desvencilhar-se da armadilha que intentava contra ele. O movimento de suas asas fez parecer que o morto havia voltado à pertencer a este mundo, e com um coração juvenil, a julgar pelas vigorosas pulsações de seu músculo cardíaco.
                Historieta para entreter os desprovidos de massa cefálica, a mim essa conversinha besta não dá motivo ao gosto.
                Mudo de canal. Vejo um debate político sobre a necessidade do desvio de verbas da construção de um parque público para a compra de cestas-básicas. Ora essas, mais um disparate. Não entendem que de comida o povo pode até não estar farto, mas não é o que unicamente lhe apetece? A impressão que fica é que os políticos querem entupir a boca do povo de comida para que assim estes não falem nada. Já dizia um escritor muito conceituado: O dito supérfluo é como o sal, não mata a fome, mas dá sabor ao pão. Oras, que ensinem o povo a lutar pelos seus benefícios, não viver de migalhas.
                Ia trocar de canal mais uma vez, mas sinto a desconfortante luz cinza começar a penetrar meu recinto. Não é propriamente a luz do sol, pois essa, a verdadeira luz do sol, não se vê há muito tempo. O céu é sempre cinza. Dizem que já foi diferente, mas é que nem o “cocô de índio” você sabe que existe, mas ver ninguém nunca viu. Vê-se é a filtragem realizada pelas negras nuvens, que nos dão essa luz atenuada. A luz que vem a nós como um caldo requentado que não temos outra opção se não a de engolir sem contestar.
                Mais um dia horrível de trabalho, meio acordado, meio dormindo. Visto minha camisa que outrora era branca, mas que agora já apresenta as amarelas rugas que prenunciam descarte eminente. Amarro minha gravata vermelha no pescoço, amarro não, que o termo não é de todo honesto com o leitor, fixo-a no pescoço, pois a gravata que uso é daquelas de zíper.
                Calço os sapatos e coloco as calças, tento sair de forma sucinta para não acordar minha mulher. É mais um dia de trabalho no Centro.

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