Certa vez a tristeza fez toc toc na porta do quarto da irmã
mais ruiva de Conrado e entrou sem esperar que fosse aberta, sem tirar o chapéu
ou erguer a barra da saia também, já que os mais íntimos nunca tiveram a formalidade
da saudação.
Entrou, precisou de um momento pros seus olhos se adequarem
às trevas do quarto, que existia não só porque carecia de luz, mas também porque
aquela era a cor do ar que saía da respiração da irmã mais ruiva de Conrado. Ela,
miúda, com um monte de dor dentro de seu corpo de panela de pressão prestes a estourar,
deitava no chão. E esperava. E esperava. Quando o toc toc veio, baixou-lhe um
peso nas pálpebras e, ora, se não eram duas folhas por onde escorria o pingo
orvalhado de uma lágrima solitária! Nem era uma manhã de noite com sereno, nem
era campo. Era uma cidade sem espaço pra capim, tiririca e fedegosos; tão quente
que nas estantes dos eruditos derramavam-se cascatas da tinta derretida das páginas
dos livros.
Conrado já não existia, e por isso convidava a tristeza,
quando ouviu o mar pela primeira vez. Ouviu o rebentar das ondas como se usasse
conchas invisíveis ao invés de fones de ouvido. O paradoxo era senão o fato de
estarmos todos no meio do cerrado, cercados de sol e privados de mar. Mas
ouvia. Vinha de além das janelas, além daquele labirinto de prédios.
No dia seguinte, na horinha da noite em que até os grilos
dormem e o silêncio se cheira, se vê e se toca, ela enganou a tristeza sem dó:
trancou o quarto, pôs a chave no fundo da barriga, logo atrás do umbigo, e zarpou
para o parapeito da janela. O parapeito da janela era um quadriculado que ficava
bem longe do chão, no sétimo andar de um prédio vermelho. O que é o que é: um
pontinho preto num prédio vermelho? Ah, é apenas o sinal da respiração preta da
irmã mais ruiva de Conrado. O negrume, um tom acima do petróleo, um tom acima
do cu do universo, estava na parede externa do edifício, expandindo em veias
negras para os quatro lados do quadriculado que era a janela por onde você e eu
vemos agora a irmã mais ruiva de Conrado saltar.
Saltou não para a morte: mesmo desejando-a absurdamente
ainda queria ver o mar. Saltou para o galho da sete-copas cheio de morcegos. O
galho rangeu sob os pés descalços da menina que vestia nada além da calcinha,
pronta para um banho de mar noturno. De passo em passo, sobre os musgos do galho,
o sangue sendo chupado de seu pé pelos morcegos que ali trocavam o dia pela noite,
cruzou a sete-copas, que terminava no telhado da casa de ópera, e lá foi parar.
Passava-se uma ópera na casa de ópera. Uma colombina com voz
aguda prolongava um “o” e o pianista teclava uma canção linda, daquelas que
evocam a peça nostálgica de nosso inventário de sentimentos. A colombina só acabou
de prolongar este “o” quando a menina já estava pisando sobre o teto de um ônibus
parado; o ônibus andou. E o som da casa de ópera se distanciava para tornar a
dar lugar ao som do mar.
No prédio vermelho, sétimo andar, chegava a tristeza e
percebeu que dentre todas as tranças ruivas que inundavam de vermelho o prédio
inteiro, a mais ruiva irmã de Conrado não estava ali. Seu quarto trancado,
porém, revelava um rastro de ar preto que não se diluía como fazem as fumaças,
ficava dobrando-se em grotescos arabescos na atmosfera como só faz uma coisa no
mundo inteiro e nós sabemos quem é. E a tristeza sabia também.
Pois abriu seu guarda-chuva de bolso e pulou da varanda,
meio embaraçada nos fios de cabelo vermelhos que também pendiam dali. Seguiu o
vestígio negro e achou-a brincando de corda-bamba num fio de alta tensão, o caminho
do mar.
Quando viu a tristeza com movimento de pluma caindo do céu,
um guarda-chuva aberto numa mão e uma flor na outra, também viu o lumiar do mar
projetado nas colunas dos prédios que estavam em sua frente. O barulho fazia
vibrar seus cabelos e o fio por onde se equilibrava, mas ninguém mais o ouvia,
ninguém jamais poderia. De repente, num tranco, a tristeza se achegou no meio
de seu caminho e ofereceu-lhe a fedida flor da morte, prometendo que nunca mais
voltaria a lhe visitar.
A irmã mais ruiva de Conrado olhou a flor, olhou os reflexos
do mar. Sim, estava quase no mar! Uma brisa salgada saía do vão daqueles
prédios, onde bem atrás toda a extensão de um mundo completamente azul e completamente
molhado a receberia para um banho. As ondas rebentavam-se com mais força agora,
o barulho era insuportável; o cheiro da areia fritada de sol, ainda que noite,
era enjoativo, agradável, bom, ruim. E entre o mar e si mesma, no fio que os ligava,
havia uma flor como ingresso. Simples.
Simples como chegou até ali, decidiu e deu um passo. A que
direção? À flor ou a casa? Rodou seu senso de direção na rosa dos ventos que
guardava na barriga junto com a chave do quarto, bem atrás do umbigo, e apontou
a seta do vetor para o prédio vermelho e preto, sua casa.
Correndo do mundo e procurando se esgueirar por entre os chicotes aleatórios que rebatem e constroem armadilhas. Quase um risco acreditar. O mais normal seria agarrar-se aos fluidos. A única diferença é que não haveria os minutinhos do prazer da pílula vermelha. Mas as vezes o abordar das marionetes provocam um incômodo, crescente, cumulativo, progressivo. Esse sim, obriga fechar os olhos e dizer: "onde estou? Nada deveria existir".
ResponderExcluirNo meio de tantas metáforas é sempre achar coisas que fazem sentido, não só pelo auxílio do autor mas também pelo tempo vivido. congratulations "D