O celular era
programado pra despertar ao som de qualquer coisa calma todos os dias às cinco
horas. O sol ainda não tinha aparecido, como é de se esperar do astro que vem
do leste e nasce trezentas e tantas vezes por ano. Ele atirou a coberta para o
pé da sua cama de solteiro e colchão afundado ‘anatomicamente’ e saiu descalço
e apalpando a parede para encontrar o interruptor.
Os inseparáveis
óculos de aros quase descascados estavam ali, em algum lugar ermo, um criado ou
uma estante, mas esquecidos pelo homem que acorda para a vida. Este vai para o
banheiro, que é exatamente onde ele pode atender aos chamados da natureza, o
que quer dizer mijar – sentado, diga-se de passagem, porque ainda guardava
alguma tontura dos mundos subterrâneos dos sonhos de agora a pouco.
Ele podia sentir
o cheiro de suor na sua pele e um cansaço dorido pelos membros todos, como se
não tivesse passado a noite deitado na cama, ou sim, mas com companhia
insaciável nesse caso. Cheiro que se misturava com o do ar quente da urina e do
hálito amanhecido. O corpo se decompunha mais rápido do que nunca. Precisava de
um banho para se livrar das partes mortas.
A água quente
caía em fluxo constante nos seus cabelos oleosos, batendo sem piedade na parte
onde logo se faria visível uma clareira, um presságio da melhor idade, um sinal
de sabedoria: uma careca. Quando se esfrega a pele com força, é difícil
imaginar que aquele ato elimina milhares de células mortas. Ele pensa, enquanto
arranca a gordura do corpo, que todos morrem diariamente e nascem também, que
nem o sol, mas nós nascemos cada vez menos intensamente com o tempo e enrugamos
e encolhemos até que morramos uma derradeira vez. O pé e o sovaco, a cara e o
saco. Observando que a ordem não é relevante. E pronto.
A toalha
pendurada num gancho da parede do banheiro é a relação mais íntima que esse
homem tem: ela fica lá, impassível, imóvel, imperturbável, esperando a hora em
que possa abraçar a carne úmida e limpa e os pelos também. Alguns diriam que a
ordem para se enxugar é, sim, relevante; mas não para esse homem. A toalha não
tem pudores. Nem ele.
Deu passos
curtos, ainda respingados em direção à porta. Passou despercebido pelo espelho
embaçado pelo vapor do chuveiro. Ao menos passaria, se não tivesse se lembrado da
barba rala, espaçada que nem sujeira, que se projetava em lugares específicos
do seu rosto e pescoço. Com a mesma toalha que abraçava, esfregou o vidro
banhado de prata para afastar a névoa cegante. E, por um instante, seus músculos
cardíacos se congelaram e prenderam a respiração.
O rosto
gravado no espelho não era o seu.
lol, este texto foi justificado!
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