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Morosidade
E amanhece. Camaleão mal havia dormido, R. tão
pouco, rogava a qualquer entidade ou causalidade universal que dissesse-lhe
onde estava Monquei; Linda dormiu bem, mas pouco; Albinati passou a noite
revezando entre lágrimas e lamúrias. Fronrel dormia como se a rotação terrestre
dependesse da atividade.
Todos
tinham fome, mas bastava uma olhadela pela janela para descartar a ideia de ir
atrás de comida. Era cedo, horário em que as ruas se transformavam em diques
estourados que jorravam gente. A quantidade de zumbis era assustadora. Assim
como os auto-falantes anunciando as extremas vantagens sexuais de se comprar o
desodorante x, a maquiagem y... Linda olhava aquela cena da janela empoeirada e
de madeira apodrecida e sentia um ódio mortal; havia depositado fé em Fronrel,
havia abandonado uma grande oportunidade de entregá-los às autoridades para
seguir as frivolidades daquela mente tão surrealmente cativante; havia
renunciado a tudo isso para ver um deles morrer explodido, um desaparecer, duas
garotas ficarem histéricas, um tentar reanimar a todos e Fronrel despirocar em
um louco que acha que leite jorra de pedra. O que a freava de ir embora? Se ela
colocasse a ideia à prática nenhum deles impedi-la-ia, então o que ela estava
fazendo ali? Conjecturava, ora pensava em abandonar o barco e se virar sozinha,
mas então olhava para Fronrel e pensava que não podia abandoná-lo assim, depois
sentia um ódio mortal de si por ter se apegado àquele grupo. E assim ficaram. À
hora do almoço R. finalmente diz o que todos sentiam, diz que tinha fome. Linda
diz que o melhor é esperar anoitecer, todos consentem, embora os estômagos
pareçam ter ressalvas quanto ao comum acordo.
Ocasionalmente um carro de
polícia passa. Nossos protagonistas tomam cuidado nesses instantes para não
serem vistos. Ouvem também alguns alertas sobre pessoas extremamente perigosas
que escaparam da cadeia, era um alerta sobre eles; o alerta dizia que eram
terroristas, terroristas subversivos, uma ameaça à sociedade e que, se vistos,
deviam imediatamente ser denunciados às autoridades competentes.
_ Ok… e quem de nós ira atrás de
comida? – pergunta Camaleão.
_ Eu vou. – diz Linda.
_ Sozinha?
_ Sozinha.
E Linda foi. Ao cair da noite o
bairro em que se encontravam era bem tranquilo. Não era como os bairros
luxuosos onde as famílias abastadas moravam, onde se fazia festa dia e noite
mas ninguém era feliz. Se bem que, naqueles dias, felicidade real era cada vez
mais rara. Era dia de semana, o que tornava ainda mais mister a calmaria.
Havia um pequeno mercado local a
três quadras do bloco habitacional onde se encontravam. A verdade é que Linda
ainda ponderava sobre como proceder, se aproveitando a oportunidade para
desaparecer sem dar adeus e deixar todos pensando que o pior aconteceu, pois
dificilmente diriam que ela abandonou o barco, ou então ir, se arriscar pegando
a ração, que foi justamente como toda essa sucessão de desventuras começou, e
torcer para que dê certo. Relutando, optou pela segunda opção; e havia uma grande
chance de, para os que ficaram no apartamento, ela ter o mesmo efeito da
primeira, pois, com os olhos atentos da capital, havia uma grande chance dela
ser pega e acabar “acontecendo o pior” literalmente.
Andou. Os postes iluminavam a
rua de forma intermitente, o que ajudava a compor um quadro meio sombrio, que
fazia eriçar os cabelos das costas. Ela segue impávida, apenas com uma pistola
que pegou na base de segurança de onde haviam milagrosamente escapado.
***
Enquanto isso, no apartamento, todos estavam
apreensivos desde que a porta se fechou entremeando as costas de Linda e o Living Room. O silêncio passou a reinar.
R. tinha vontade de gritar, de desabafar até os pulmões doerem, achava aquela
situação uma piada na qual a única descontente era ela, ela queria ação, queria
que batessem na mesa e dissessem “vamos atrás do Monquei, vamos achá-lo”,
queria que alguém se dispusesse, mesmo ela sabendo ser isso impossível; queria
que alguém ao menos cogitasse a hipótese, mas não, ninguém dizia nada, todos
estavam apáticos, todos estavam descontentes.
Fronrel começa a murmurar. Todos o olham
aflitos, não queriam contemplar aquele espetáculo triste novamente, aquela cena
deplorável, aquele apelo interminável somente comparado ao seu monumental
fracasso em fazer sentido. Mas dessa vez ele nem se levantou, apenas abriu os
olhos e começou a dizer, baixinho: “não é culpa deles, é como nascer com o
cabelo ruim, você não escolhe, não é culpa deles...” e continuou nisso por dez
minutos, quando então voltou a ficar calado.
***
Linda chega ao mercado. Para no
estacionamento e analisa o local, estava lotado. Então ela tem a idéia ao ver
um cliente descarregando as compras do carrinho de compras no seu carro. Em vez
de roubar a loja e correr o risco de se envolver em uma epopéia problemática de
sair, ela iria roubar um carro que estivesse abarrotado de comida e pronto,
teriam um considerável estoque. Chega perto de um carro família, desses com
bastante espaço no porta-malas. O dono está desatento, provavelmente olhando
para algo na própria roupa. Ela chega sorrateiramente, como o gato que espreita
o passarinho novo e vê nele o novo jantar. Como iria lidar com aquele zumbi?
Essa era a pergunta. Bem, o estacionamento estava consideravelmente vazio.
“Vou quebrar o pescoço dele e torcer
pra ninguém notar.”
E foi assim. Não demorou mais
que quatro segundos. Ela chegou, posicionou as mãos envolta da cabeça e queixo
e, antes que ele pudesse perceber o que se passava, já havia morrido.
É engraçada a história desse
zumbi. Ele não olhava “algo na própria camisa.” Olhava um SMS da sua esposa
xingando-o. Humilhando-o por ser tão imprestável, por ter transformado a vida
dela em um Inferno, por ser um charlatão, tê-la enganado com a premissa de ser
o homem da vida dela, por ser um porco que ultimamente nem prazer na cama lhe
dava.
Essa queda livre começou
justamente quando ele estava para refutar uma proposta de emprego que envolvia
alto comprometimento e grande renda salarial. Na época, com o salário que ele
passaria a ganhar, eles poderiam comprar o tão adorado carro dos sonhos (que
era justamente o que Linda levava nesse momento), e também uma temporada no
Spa, que há tempo a esposa vinha lhe suplicando. Enfim, sob influência da esposa
ele aceita o encargo. Após certo tempo a mulher redecora a casa, troca o
jardim, compra novas roupas... Mas o marido já não passa tanto tempo em casa, e
o serviço lhe é extremamente fatigante, deprimente, mas ele pensa que a mulher
está feliz, está contente, afinal agora tem tudo que a vida pode oferecer. O sexo
diminui, os momentos juntos diminuem; ela arruma um amante. Ele ainda não sabe,
mas simultaneamente entra em depressão. As brigas começam. As acusações de “não
apoio”, os dizeres de “não compreensão”, os colóquios grosseiros sobre “a culpa
ser sua”. E por ai começa a ruir o casamento. Com o dinheiro que eles haviam
juntado, se ele saísse agora dessa rotina, poderiam viver a vida com regalias e
prazeres e ainda teriam um dinheiro para deixar aos eventuais herdeiros, mas a
gana era maior, a necessidade de ver os zeros aumentando na conta bancária era
um Karma, um vício, um fardo do qual nenhum dos dois conseguia se livrar, mesmo
sabendo, cada um sem dizer ao outro, que era justamente essa rotina o problema.
Bem, Linda deu um fim a tudo isso.
Alguém tardiamente grita assalto
e corre ao corpo caído no chão, mas já era tarde, o carro já estava longe.
Linda chega ao apartamento.
Anuncia os espolhos da cruzada e diz para todos correrem, porém sem alardes, e
retirarem rapidamente as compras de dentro do carro, pois ela tinha de dar fim
ao veículo o mais rápido possível.
Linda requisita o auxílio de
camaleão para dar fim ao automóvel. Uma vez que ela vai jogá-lo bem longe e
precisa de alguém para trazê-la de volta. R. e Albinati concordam que há certo
risco em ficarem sozinhas no apartamento, ainda mais com a presença
imprevisível do Fronrel, mas Camaleão assegura-as de que será breve.
Saem. Linda no carro furtado,
Camaleão no que pegaram do velho na entrada da cidade. Lilia guia a viagem.
Seguem à região central de Brasília. É madrugada. Param de frente ao Lago
Paranoá. Linda acelera bastante o carro, solta a embreagem, o carro arranca,
ela salta com ele em movimento, ele cai na água e afunda lentamente. Ninguém os
viu. Rapidamente, Linda entra no carro em que estava Camaleão e voltam ao
apartamento.
Fronrel estava finalmente de pé.
Olhava fixamente pela janela, e por mais que se esforçassem, Albinati e R. não
conseguiam tirá-lo de lá. A cada intenção ele reprimia-as com um “Shhhh”
corroborado pelo dedo indicador posicionado frente aos lábios. O olhar de
Fronrel poderia ser definido como a transposição da Tristeza. Vertiam de seus
olhos, ocasionalmente, uma ou duas sofridas lágrimas, daquelas que custam a
descer pelas maçãs do rosto.
_ Agora a rua está vazia. Amanhã
aqui vão estar eles de novo. Coitados. Eles não têm culpa sabe. Eles... eles...
– nesse momento ele comprimia a cabeça com as mãos. – eles... sofrem. É como
uma maldição sabe, uma maldição, que nem essas das bruxas, essas que as
macumbeiras fazem, só que essas funcionam, e sem galo preto nem nada. E nessa
maldição eles vivem, passam a vida, passam a vida... a v-i-d-a...
Então Fronrel simplesmente cai.
***
E assim foi, com a comida que
tinham passaram exatos dezenove dias e um pacote de bolachas no vigésimo. Não
armaram planos, não traçaram estratégias, não fizeram nada, apenas comeram e
lamentaram o ponto em que então pararam. Do Monquei nem notícia, só lembranças
e Esperanças. Fronrel continuava na mesma, entremeando entre momentos de fixa
atenção no vazio com uma baba escorrendo-lhe pelo canto da boca, momentos de um
solilóquio incoerente e sonecas extremamente compridas. Linda estava
praticamente decidida a abandonar o barco. R. parecia ter perdido o brio da
vida. Albinati limitava-se a chorar encolhida em algumas noites e tentar algum
diálogo com Fronrel, sem nenhum sucesso. Camaleão via toda a cena com uma
tristeza sem expectativas.
Mas mesmo os desiludidos têm
fome, e não era diferente com nossos heróis. Porém, mesmo desiludidos, nossos
heróis ainda pareciam agraciados, pois o tédio não lhes havia proporcionado o
afago. No mesmo dia em que findou-se a última bolacha do pacote, alguém bate à
porta dos nossos protagonistas.
Linda olha pelo olho-mágico,
eram zumbis, e eram muitos. Parecia ser uma família bem grande, ou uma espécie
de grupo. Será que pretendiam tomar o apartamento? Linda arrisca:
_ Está ocupado!
Os zumbis entreolham-se. Nenhum
deles profere uma única palavra, mas por debaixo da porta escorre um papel. Um
papel que parecia ser a planta do conjunto habitacional em que residiam. Nele
haviam quadros negros e brancos e uma legenda que dizia serem os quadros negros
os apartamentos habitados e os brancos os vagos. Sendo a estada dos nossos heróis
fruto de uma invasão, não era de se esperar que estivesse o quadro referente ao
apartamento em questão pintado. Silêncios. Os zumbis agitam-se. Quando então
começam a gritar, a gritar e fazer arruaça. Em pouco tempo o corredor está
tomado, os residentes pareciam instantaneamente terem tomado as dores da causa
da família/grupo de zumbis. A porta começa a tremer, os solavancos do outro
lado eram moderadamente fracos, porém periódicos. A porta não resistiria muito.
Estavam no primeiro andar.
_ Teremos que sair pela janela,
e rápido! – diz Camaleão.
Todos se direcionam para a
janela, então, ao fazer as contas, olham para trás e veem Fronrel, sentado e quieto,
sereno como a manhã de Natal. Ninguém diz, mas, por um instante, todos ponderam
a hipótese de largá-lo ali, não era mais Fronrel, era apenas uma casca, um
retrato, Fronrel havia morrido. Mas eis que ocorre algo, Fronrel parecia ter
percebido os olhares suplicantes que penetravam-no.
_ Ok, Ok. – diz Fronrel,
impaciente. – em vou.
Então ele levanta-se e marcha
rumo à janela. Descem um a um, inclusive Fronrel. Os zumbis conseguem invadir o
apartamento. Ao perceberem que não há ninguém ali, vão até a janela. De lá
amaldiçoam e ameaçam nossos protagonistas com mistos incompreensíveis de
passagens religiosas, leis constitucionais e linguajar de baixo calão.
Nossos protagonistas entram no
carro. Saem.
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