Ela tinha doze anos, uma meia
azul e outra vermelha dentro dos tênis velhos e meio apertados, calça preta e
uma blusinha amarela desbotada de mangas compridas e estava correndo como
nunca. Fazia frio e a divertida rua dos
paralelepípedos estava escorregadia por causa da camada de água e lodo e o que
quer que fosse aquilo, ainda intocada no começo da manhã. A menina corria
desajeitada sobre aquelas pernas muito finas e porcamente equilibrada por
aqueles braços estabanados e tensos. Atrás dela vinham os dois homens mais
feios do mundo inteiro: o grosso-redondo-careca e o alto-sujo-alto. Mas ela
sabia que as pernas muito finas tinham que ser o bastante, porque, se parasse
de correr, era o fim.
Uma semana antes tudo isso começou. A mãe foi
presa por estar enfiada em algum buraco
com bandidinhos fumadores de pedra e ela ainda carregava um monte de dinheiro,
que só deus conhecia a procedência. Pelo menos foi isso o que disse o
maldito do velho que vivia sentado na frente da casa, sem mais o que fazer além
de falar. Mas ela sabia onde a mãe tinha arrumado o dinheiro, só não sabia aonde
ela o tinha levado.
Ela corria com ainda mais força.
Gotas cristalizadas de lágrima soltavam-se dos seus olhos enquanto o vento
gelado soprava contra ela. A menina magrela de quem ninguém se lembrava nem
mesmo quando a mãe foi pra cadeia podia facilmente ser carregada pelo vento num
dia normal – essas pernas muito finas não eram feitas para resistir -, mas não
hoje. Hoje ela enfrentava dois homens feios e o chão molhado e, se ela parasse
de correr, era o fim.
Foi só quando as coisas do pai
começaram a sumir de casa que ela soube que estava realmente sozinha. Ele tinha
morrido alguns anos antes por conta de uma doença de nome muito estranho. E
então ela e a mãe começaram a ficar pobres, pobres de verdade, por causa do custo do tratamento e todas as
dívidas que ficaram, a mãe dizia. Mas só recentemente a mãe teve coragem de
vender as coisas do pai, todas as roupas e sapatos e os livros e aqueles lindos
óculos de pernas maciças e lentes grandes e grossas.
A menina vinha a toda a
velocidade quando os seus pés eufóricos encontraram uma caixa de papelão
abandonada no meio da rua. Ela começou a cair e podia ouvir a respiração
bestial do alto-sujo-alto poucos passos atrás. A sua mão livre tocou o chão
primeiro e ela sentiu o arranhão quente e úmido que agora marcava a sua pele e
a despertava do torpor da queda. Os braços encardidos do homem se esticaram
para agarrá-la pelo cabelo, mas ela podia oferecer mais dificuldade do que
aquilo. Num instante já estava de novo de pé e contra o vento. E estaria longe
se aquelas mãos imundas não estivessem fechadas em volta das pontas dos seus
longos fios. A dor foi uma pontada profunda que ecoou por todo o seu corpo e o
caldo que escorreu pela nuca era medonho. Logo o homem jogava irado um tufo de
cabelo no chão e voltava à sua perseguição. Ela não podia olhar para trás, se
parasse de correr, era o fim.
Onde
é que se pode vender coisas velhas?, ela se perguntava sem atinar com a
resposta. Pareceu uma eternidade o tempo que ela levou até criar coragem e
perguntar para a mãe. A resposta não foi muito educada, como ela esperava, mas
foi uma resposta. Soube por quase uma semana, mas não foi até lá. Foi preciso
que sua mãe fosse presa, como um catalisador de ânimos, para que ela fosse com
os primeiros raios do sol em busca do que era dela.
O alto-sujo-alto corria muito
perto quando ela decidiu virar à direita, e não à esquerda, em direção à ponte.
Atrás dela se distanciava a rua vinte e nove, tão calada e protetora. Ali deviam
estar o velho e as outras pessoas que olhavam torto para ela e a mãe, todos
eles torcendo pelos homens feios, mesmo sem saber nem um pingo da verdade. Seus
pés tocaram a vacilante madeira negra da ponte e embaixo dela o rio corria
calmo e austero, como um abraço de avô. Teve que diminuir o ritmo, com medo de
pisar muito forte na madeira frágil. Ela sabia que o grosso-redondo-careca já
havia desistido muito tempo atrás e caído ofegante pelo caminho. Mas o
alto-sujo-alto não, e nem a instabilidade da ponte o fez diminuir. Era medo o
que fazia todos os seus membros formigarem. Pressionou com força o bolso da
calça. Se ela parasse de correr, era o fim.
Algumas horas antes da mão, do
cabelo e do medo, a menina tinha ido até aquilo que chamam de Prego. Uma loja
onde coisas que já foram de outras pessoas são vendidas por preços menores. Era
inacreditável como algo que ela amou tanto podia parecer barato e dispensável
na mão daqueles homens. Ela não podia deixar isso acontecer. Aquilo era a sua
herança, era tudo o que tinha sobrado de qualquer traço de memória feliz.
Estavam ali, ao alcance da mão, os óculos tão elegantes que o pai estava sempre
usando, que o ajudavam a ler, a escrever, a dirigir e a olhar profundamente para
a menina magrela e sorrir como ninguém além dele fazia. O homem atrás do balcão
já esbravejava O que é, menina, caga ou
desocupa a moita! E então ela pensou, ou então falou sem perceber, Eu cago. E no próximo instante já estava
na rua com o vento na cara.
Mas ali, em cima da ponte,
parecia o fim. O alto-sujo-alto se aproximava e o desespero também. Ela não
queria ser pega e ela queria os óculos para si, como a herança da única pessoa
que algum dia foi boa para ela. Suas pernas finas titubearam assim como a sua
cabeça, mas era isso ou viver sem os óculos; viver cega para o amor – patética metáfora, até uma menina de doze
anos podia ver.
Então pulou. Pulou para o rio calmo
e austero. Porque, como a vida ensina e disso ela não podia se esquecer, se
parasse de correr, seria o fim.
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