Há certo tempo atrás, lancei na nossa comunidade do Orkut um desafio: Escrever um conto com o tema "Quem Sou Eu.". Confesso que mesmo tendo pleno entendimento da audiência deste blog, eu esperava um pouco mais de participações, mas well, não vim ficar me lamentando. Houveram alguns concorrentes, recebi alguns textos e todos extremamente bem escritos. Sirvo-lhes agora o que, em minha humilde opinião de merda de juiz, foi o Melhor.
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Gradualmente,
pôde enxergar.
As coisas, no
início, não tomavam forma, não tinham significado. Eram opacas e fúteis.
O desafio era
se movimentar, andava tropeçando em tudo, caia e se machucava muito. E o pior é
que nunca aprendia onde tinha as rugosidades maiores, sempre caia no mesmo
lugar, lamentável.
Não se sabe o
momento certo em que as coisas começaram a mudar, mas para sua sorte, tudo
mudou.
Aquela barreira visual levantou junto com ele,
mas para sua infelicidade, o mau hálito, os cabelos horríveis e desgrenhados, o
sono e a cara amassada se foram depois de escovar e tomar um banho, mas o mesmo
não ocorreu com sua costumeira limitação, teve, como sempre, que fazer tudo
isso tateando devagar as coisas.
Saiu, e no
caminho para onde iria, foi convidado para uma festa. Não sabe por que, mas se
desviou do seu caminho original( na verdade nem ele sabia para onde ia) e
aceitou o convite. Entrou no carro com os outros, e ajudado por uma pessoa que
tinha um toque áspero, mas teve uma imensa impressão que se tratava de uma
mulher, entrou no carro.
E ali foi, as
pessoas dentro eram muito barulhentas, e o carro fazia tantas curvas que era
impossível ficar com a cabeça na vertical. Tentou participar da conversa dos
seus companheiros desconhecidos, mas foi ignorado. Primeiro pensou que devido
ao barulho não o tinham escutado, mas aos poucos foi notando que fingiam nem
escutar seus comentários e perguntas.
Depois de
muito vagar dentro do veículo, começou a se preocupar, onde estava indo, e por
que havia entrado naquele veículo cheio de gente que nem conhecia. Povo chato e
barulhento. Tentou se levantar, mas uma curva o fez cair em cima dos outros,
estes começaram a lhe dar socos em todo seu corpo. Sentiu que sangrava e
vagamente definiu esboços de sorrisos maldosos nas faces dos agressores.
Apanhou muito,
e quando cansaram, o jogaram pela janela fazendo com que caísse numa vala na
beira da estrada. Era muito profunda, e foi o suficiente para fazer com que ele
rolasse algumas vezes ralando-se em alguns pontos. Levantou, tentou tirar um
pouco da sujeira da roupa e do corpo e começou a questionar como sairia daquele
lugar. Percebeu que a bifurcação do solo não possibilitava uma saída fácil,
para fazê-lo teria de trabalhar um pouco.
Além de não estar vendo muito, o pouco que via
não resolvia nem um pouco sua dificuldade. Precisava escalar algo sem nenhuma
ferramenta e praticamente cego, só contava com sua capacidade física. Depois de
muito esforço observou que algumas raízes apontavam para fora do solo, se
aproximou destas e passou a agarrar nelas usando-as como ponto de apoio. O
primeiro metro escalado foi o mais difícil, pois as raízes estavam mais finas e
escorregadias, depois estas foram ficando mais resistentes.
Teve que
começar a escalada algumas vezes, devido aos tombos que estava levando, e
começar tudo de novo, mas a cada início ficava mais doloroso escalar, pois suas
mãos estavam se machucando e tinha que achar outras raízes para se apoiar, pois
as outras já estavam desgastadas.
Finalmente encontrou
os galhos subterrâneos certos e conseguiu sair da vala. O suor já lhe cobria o
rosto, misturando sal, água e terra. Se livrar daquela prisão de terra não
resolveria seu problema, precisava de um banho. Pegou carona com uma coroa que
dirigia um veículo de luxo e pediu que esta o deixasse perto de um lago
qualquer. Assim foi feito, mas antes de ir embora ela deu a ele um cartão onde
continha algumas informações caso ele se interessasse em procurá-la. Ele sorriu
e ela foi embora.
Foi andando em
direção onde a mulher dissera que estava o lago, e quando sentiu que os pés
começaram a se molhar, tirou a roupa e começou a lavá-la, era a única que
tinha. Depois de lavada, a roupa foi estendida na grama que cercava o lago e
seu dono mergulhou no lago, nadou um pouco, sentiu algumas fisgadas em seu
corpo e deduziu ser peixes com fome, aquilo o preocupou o suficiente para fazer
com que se preocupasse em sair da água.
Uma questão
foi levantada, como acharia a margem em que havia entrado? Na verdade não
acharia.
Na dúvida
nadou em linha reta. Sentiu que toda a sujeira já havia se misturado com o
líquido do lago, o banho suprimiu suas necessidades. Sentiu que sua barriga
começou a ser tocada pelo barro da margem e decidiu se levantar. A visão ainda
muito lhe decepcionava, apesar de ter melhorado bastante em relação a quando se
levantara.
Rodeou o lago
algumas vezes para achar suas roupas, e se envergonhava quando ouvia os
barulhos dos carros na avenida. Na terceira volta, pensou algo, não conseguia
encontrar suas vestes porque elas não estavam ali, haviam sumido. Que fim
tiveram, não sabia, nem desconfiava, simplesmente aceitou e decidiu continuar.
Ignorando sua
nudez começou a gritar pedindo carona sempre que escutava o barulho de algum
veículo, pegou carona com a mesma coroa. Ela parou o carro e ordenou que
entrasse, ele notou que toda a sujeira da carona anterior havia sumido pois não
sentia a terra incomodar a ultima camada de sua pele.
Ele perguntou
o que havia feito da sujeira que ele havia deixado e ela simplesmente sorriu e
disse para que ele não se preocupasse com coisas banais como essa. A idéia foi
aceita.
O carro
começou a se movimentar e a mulher jogou roupas limpas em seu colo, com
dificuldade, devido sua parcial cegueira, foi tentando se enfiar naquelas
vestimentas tão diferentes a que estava acostumado. Eram mais confortáveis,
vestiam muito bem, mas sentiu que não havia colocado do modo adequado, faltava
alguma coisa.
Arriscou abrir
um pouco os olhos e notou que conseguia ver um pouco mais que da última vez que
tentara. Ficar com os olhos abertos não ajudava muito, pois o esforço que fazia
para distinguir alguma coisa lhe causava dor no globo ocular e era preferível
ficar com a pálpebra abaixada.
Chegando a um
determinado ponto da avenida, a mulher decidiu ensiná-lo a conduzir o carro,
mas ele rápido se negou, explicando que sua visão não estava boa o suficiente
para fazer o que estava sendo proposto, mas ela insistiu até que ele aceitou.
Parou e trocaram de lugar, numa velocidade nula ela foi lhe explicando o que
fazer.
“Primeiro liga
a chave, em seguida aperta a embreagem até o fim, depois coloca na primeira
macha, e bem devagar vai soltando o pedal.”
Ele muito preocupado em não danificar o
veículo e evitar ser atingido por outros, fazia tudo com a máxima atenção.
Valia tudo para impressionar.
Nas duas
primeiras tentativas falhou, na terceira desistiu. Fez menção de sair do carro,
mas sua condutora apertou-lhe o braço e disse que continuasse tentando. Na
tentativa de sentar-se no banco de volta bateu a cabeça no teto do carro, o que
causou muita dor. Abriu os olhos outras vez, tentando evitar outra lesão notou
que sua visão havia melhorado mais um pouco. Não que estivesse boa o
suficiente, mas estava melhor.
Isso foi um
estímulo para que tentasse novamente. Ajeitou-se no banco e repetiu os primeiros
passos, dando início a movimentação do veículo. Percebendo que tivera algum
êxito ficou todo excitado e continuou a se esforçar para tornar o movimento
contínuo.
Chegando à
cidade a mulher tomou o comando, e o conduziu até uma estação de trem. Deixou-o
ali e se foi. Novamente ele teve que se virar para fazer qualquer coisa,
regularmente tentava pedir auxílio a algum transeunte, mas nunca obtinha
sucesso. Sentiu muita fome depois de lembrar-se que não havia comido nada desde
que saíra de casa. Procurou uma lanchonete para suprir suas necessidades,
entretanto, lhe lembraram que ele não tinha dinheiro.
NÃO TINHA
DINHEIRO! Como era possível, trocar papel por comida. Sentiu nojo do
capitalismo, pessoas morreriam de fome se não tivessem dinheiro. Comidas apodreceriam
se ninguém fosse até elas trocá-las por papel. Quanto maior sua indignação,
maior era a dor que sentia no estômago. Seus sucos gástricos estavam lhe
corroendo por dentro.
Já que nada podia fazer, escorou próximo a uma
parede, e ficou se lamentando de tudo. Reclamando de tudo, mas nunca procurando
resolver o problema. Só reclamava.
Uma moça com
cara de velha se sentou perto dele e segurou firme sua mão. Estava disposta a
conduzi-lo para onde quer que seja o destino. Ele a olhou, depois de muito esforço
ele percebeu a face envelhecida da jovem, primeiro sentiu pena, depois se
apaixonou. Ela se levantou deu-lhe alguns biscoitos e começou a puxá-lo.
Deixando-se conduzir pela moça ele ergueu-se também e permitiu que ela fosse
seus olhos. Tentou visualizar que caminho seguiam, era cheio de curvas,
obstáculos, bifurcações, buracos, pessoas, até animais estavam incluídos no
trajeto, complexo demais para o seu entendimento.
Depois de
muito andar, ele conseguiu distinguir uma praça, muito simples, mas tinha bancos.
Sentaram-se no mais próximo e foram discutir, só ela discutia. Como contemplava
aquela mente, era algo muito acima do que estava acostumado a tratar, não era
superior a mente da mulher que lhe dera carona, mas era de um modo igualmente
fantástico. Sua facilidade em resolver seus enigmas era algo assustador, muito
assustador.
A jovem-velha
o conduzia pela mão a todos os lugares que ele devia conhecer, aos poucos ele
foi se adaptando a tanto conhecimento, tanta informação lhe sufocava, mas ia se
esforçando para engolir tudo e lembrar-se de tudo. Um grande passo deu quando
decidiu que não queria mais ingerir pensamentos prontos, deveria deglutir seus
próprios. Decisão que lhe custou muita dor de cabeça e mais espaço para entrada
de luz em seus olhos, a dádiva da visão o estava abençoando.
Foi conduzido
por algum tempo, um tempo tão limitado, mas que mudou todo o seu trajeto, sua
visão.
No inicio toda
sua mão era apertada pela moça, agora só um dedo ela segurava. Quando percebeu
isso entrou em pânico, como continuar se aquela mão se desprendesse?
Sua pergunta
foi respondida depois que andavam por um caminho complicado. Ele tropeçou e
perdeu a mão que o sustentava. Desesperado para recuperá-la cavou o vácuo e
nada apalpava. Quando conseguiu se por de pé novamente, notou que a dona da mão
não o esperava, continuava seu caminho, correu até ela e tentou se aproximar,
mas não foi possível, estava longe demais, ela havia sumido.
Acostumado a
ter um condutor, não sabia nem como sair do lugar. Fora esquecido na mais bela
bagunça. Caiu muitas vezes, tentou pensar. Pensar o quê? Como?
Avistou um
carro e decidiu entrar nele, foi seguindo os passos que lhe fora ensinado num
passado próximo e depois dos seus esforços colocou a máquina em movimento. Como
se orgulhava disso. Sua parcial visão lhe possibilitou dirigir por alguns
metros sem ser atingido por nada. Depois que atropelou um ciclista teve que
sair do veículo.
Ele estava com
a razão, na velocidade adequada, na mão certa, não tinha um erro. O ciclista
todo irado por ter sua bicicleta danificada queria imediatamente um concerto,
mas ele se negou e apresentou toda a argumentação a seu favor. Mostrou seus
acertos e os erros do outro. Isso causou indignação, mas foi o suficiente para
ganhar a discussão.
Depois do
ocorrido, foram surgindo várias oportunidades para discussão e enfrentamentos.
Usava os argumentos que lhe cabiam, e a cada oportunidade dessas notava que
distinguia melhor o que acontecia ao seu redor. Viu que o mundo não era tão
bonito quando imaginava, ele era feio, sujo, e muito fétido, suas narinas
também estavam comprometidas, lamentável.
A bagunça toda
que ele conseguia distinguir lhe fazia lembrar-se do quanto era cego.
Está vendo
aquele cavalo que era visto malhado, lustroso, forte e bonito? Na verdade é um
pangaré morto.
Reunindo todo o conhecimento do qual teve
acesso foi em busca de mais. Agora conseguia ler, um dos maiores passos na vida
de um homem. Na busca de todas as informações do mundo encontrou novamente a
mulher que lhe dera carona, como foi bom aquele encontro. Ela não se parecia
nem um pouco com o que ele imaginava, era bem diferente, só a reconheceu porque
ela o viu e foi até ele.
Conversaram
por um bom tempo e se despediram.
Foi
percorrendo todo o caminho que havia traçado que ele reencontrou sua antiga
guia. Esta também não era nada parecida com a imagem da sua imaginação, a
reconheceu pelo cheiro. Sentiu vontade de ser conduzido de novo, mas percebeu
que já não precisava ser guiado, sabia o caminho.
Conheceu novos
lugares, novas pessoas, mas isso não fez com que se esquecesse das antigas. E
quanto mais pensava, mais via e mais sentia vontade de pensar. Mas ver não é
nada fácil, exige muito, custa muito caro. Apesar de tudo, sua visão ainda era
comprometida, se indignava muito com isso. Por que essa maldita limitação não
lhe deixava? Por quê?
Foi estudando
mais que encontrou a resposta, e foi num dos dizeres de um dos mais filósofos
gregos, Sócrates, que a muito tempo disse:
-- Só sei que
nada sei.
E percebeu que
poucos tiveram uma visão completa, se é que tiveram. E foi nesse flash de
consciência que percebeu que ainda estava submerso na mais densa escuridão.
Ainda tinha muito que fazer.
Escrito por: Vinnycius Pereira.
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Ps: Temos um outro texto neste blog que também é uma contribuição de leitores: Um Dia de Sunrise - não é fantasma o morto andante. Leiam!
Caramba eu ganhei. oO
ResponderExcluirEu gostei, você é bom : ) !
ResponderExcluirMUITO BOM!!!!
ResponderExcluirUm verdadeiro conto! Bem escrito! ^^,
Mereceu ganhar!
Muito bom,parabéns.
ResponderExcluirObrigado, realmente obrigado.
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