Pós-zumbis 4ª Temporada (2)


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O panorama
                Após algum tempo de servidão, o serviço já ia se tornando rotineiro para Monquei. O ser humano tem uma das maiores dádivas, que é a virtude da adaptação; o ser humano se adapta a tudo: à miséria, às condições escassas de comida e água, à corrupção, à perda de escrúpulos… Não há exceção, as raras que algum dia chegaram a ocorrer faleceram. E não é diferente com Monquei. O primeiro caçado foi sofrido, precisou ter estômago, não dormiu durante a noite, pensava em como explicar sua postura se encontrasse R. ou algum de seus companheiros; o segundo ordenado foi igualmente sofrido, teve visões de sua moral se esvaindo aos poucos, ponderou se ainda restava-lhe alguma dignidade, dormiu muito mal; na terceira inquisição sofreu um ataque, levou uma facada no braço direito, nada grave, atirou no réu sem hesitar, sentiu culpa, mas esta foi atenuada pela atribuição da causa do fato ao próprio morto, dormiu ao meio da noite; o quarto foi pego enquanto dormia, chorava e gritava dizendo ser inocente e dizendo não ter feito nada, Monquei leva-o, dorme razoavelmente essa noite; o quinto é uma síntese que em média é igual aos anteriores, mas Monquei já dormia bem e ligeiramente sem culpa, era só não pensar muito na situação.
                Monquei nunca pediu uma prova de vida acerca de seus companheiros, o que aquele senhor no Banco Central lhe disse deixava-o com medo de um possível dilema, o de duvidar da veracidade do que lhe era mostrado. Seguia, dia após dia, procurado após procurado, na expectativa de estar fazendo não o certo, mas o necessário.
                Mesmo não pedindo provas, Monquei não tinha porque duvidar do cativeiro de seus colegas, logo haverá o leitor de imaginar a surpresa que não deve tê-lo acometido ao ver seus companheiros sob holofotes que ele mesmo estava empunhando. E voltamos então ao momento em que termina a temporada passada. Ou melhor, assim deveria ser, e digo que fico tentado a fazê-lo, mas não é isso que se sucederá. Explanarei agora um assunto que muitos leitores podem achar dispendioso, ou mesmo uma bobagem sem sentido, mas prometo ser breve e protesto contra os argumentos que atentam contra a necessidade desta descrição, sim, digo de antemão que é uma descrição útil.
                O mundo, tal qual nossos personagens conheciam, não existia mais. E não existia mais para outras pessoas também, nossos personagens nada têm de exclusivos, pelo contrário, são por vezes até ordinários demais. Mas a verdade é que para a maioria esmagadora da população o mundo seguia sendo o mesmo. É bem verdade que nos últimos meses as propagandas pareciam ter aumentado, a carga horária de trabalho teve um ligeiro acréscimo, as indústrias de opinião estavam mais incisivas, mas são detalhes que não dizem respeito às maiorias, e quando digo “não diz respeito” entenda que o que quero dizer é que ninguém vê nisso um mal tão dantesco como viam nossos personagens. Então cabe a nós, como leitores hipocritamente imparciais, não levarmos a mal os zumbis que atacam nossos heróis, para eles, que tiveram grande parte da capacidade intelectual ceifada, nossos heróis nada mais são que baderneiros, vagabundos, criminosos.
                O processo foi muito simples, e seu princípio vem bem antes de quando Fronrel matou Sefode, seu irmão, com um tênis na cabeça. Foi apenas uma estrapolação do que a muito já se via, cultura de massas, construção de valores pífios, validação desses valores, produtos sem fim determinado ou necessário, mas que tinham de ser necessariamente consumidos. Isso tudo fez com que a maior parte dos humanos fosse privada de um tempo ao pensar, naturalmente que não se deve colocar a culpa exclusivamente nos burgueses e empresários, é bem verdade que a culpa destes é significante, mas todo zumbi que hoje só não chora porque já chorou demais também tem suas contas para acertar com deus.
                E ai temos o inicio do processo de absorção do processo. Uma vez que o jogo foi implementado, basta dizer o quão positivo aquilo foi para diversos fatores sociais e econômicos e como isso te dá a oportunidade de ser bilionário, basta ter uma ideia genial; e se no fundo nenhum destes argumentos é verídico, podem ser facilmente criados e ninguém irá ter coragem de ir buscar a origem.
                Em síntese, o que deve ser entendido é que o mundo simplesmente caminhou mais fundo no que chamamos de estilo de vida contemporâneo; o que ocorre desde o inicio desta saga dionisíaca é a narração da história de alguns indivíduos que passaram a enchergar isso de forma diferente.
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                Monquei vê R. e pela primeira vez em muito tempo sente vontade de chorar. Não só pela saudade, mas por tudo que aquele encontro irá acarretar. Uma vez que eles acabam de ser pegos, existem algumas opções, nenhuma delas sem perda, e nenhuma perda sendo de fácil escolha, mas antes de enunciá-las basta conjecturar que, uma vez entregues na “delegacia” quaisquer procurados saiam da alçada de Monquei. Enfim, as opções eram essas: Primeira - Sacar a pistola agora, matar os censores que estavam juntos com Monquei e fugir com seus companheiros; Segunda, a menos provável – Fingir que não os conhecia, entregá-los e atenuar a consciência com bastante álcool, drogas e mulheres; Terceira - entregá-los, cobrar explicações de seu superior sobre essa situação fajuta e tentar barganhar uma passagem de lado com seus companheiros, mas duvidava que algum deles aceitaria. A primeira seria difícil dada a falta de perspectiva do grupo, a segunda pouco provável não só porque ele não tinha tanto sangue frio, mas também porque não iria entregar R., a terceira já sabemo-lo.
                É importante justificar tais conjecturas. O caminho mais óbvio àquele que não tenha se corrompido seria largar tudo e se juntar novamente a seus amigos, uma vez que o pretexto de seu martírio, que era mantê-los vivos, não se fazia mais necessário. O que ocorre é que, como já falamos, a miséria constante faz o Homem rever algumas premissas, e o que fazia Monquei tremular nesse momento não a intenção de abandonar seus amigos, mas sim a ideia de convencê-los a aderir; talvez a síntese dessa aspiração possa ser transposta em uma única palavra: Estabilidade. Era algo que pela primeira vez em muito Monquei estava experimentando.
                Os Censores começam a trabalhar. Pegam os algemados e começam a levá-los para os camburões. Monquei precisava agir, precisava retardar o processo, precisava de mais tempo para pensar no que fazer. Mas antes que pudesse fazer algo a este respeito relacionado, um dos subordinados lhe cutuca e diz: “senhor, devemos ir, há outras ocorrências que precisam ser verificadas.”
                E Monquei sente os pesos da dúvida e do refluxo.

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