O peixe boiava morto no aquário redondo da
mesinha, quando ela acordou toda molhada, o pijama e a cabeleira armada,
pensando ter mijado uma caixa d’água inteira.
Sentou-se. Tateou a parede e apertou o
interruptor que deu início ao jogo elétrico do sopro na sequência de dominós em
pé: uma cadeia que não acabou com um último dominó deitado, mas com uma lâmpada
acesa, claro. Após a dor que a luz repentina deu naqueles olhos rosados, viu o
quarto inundado, um mar em quatro paredes cujas algas, corais e navios
naufragados foram trocados por livros, quadros, meias sem pares e o restante da
mobília. E antes que pudesse correr por sobre a cama para chegar até o extremo
oposto do quarto, onde havia uma porta fechada, a água já havia alcançado seu
pescoço, porque subia vertiginosamente rápida.
No outro cômodo, dormia um cachorro
peludo. Talvez ele sonhasse no exato segundo em que sua narina foi inspirar o
que pensava ser ar, mas era a água que explodira de repente a porta do quarto
ao lado. Morreu enquanto a água foi adentrando a casa na forma de uma onda em
cuja crista surfava frustrantemente a moça de olhos rosados.
A onda circulou a mesa de jantar,
levantou o sofá, ultrapassou umbrais, deu com a porta da frente, quebrou-a,
venceu o muro de dois metros, crescia, foi parar na rua e, em segundos, a
cidade boiava num dilúvio embaixo de um céu azul, sem nuvem. A merda toda era
que não existia um deus naquele lugar que tivesse mandado a menina construir
com antecedência um barquinho de lego.
Assim que as árvores mais altas da rua
começaram a ficar submersas, surgiram uns braços nadando entre as marolas e
borbulhas em volta da menina cujas íris cor-de-rosa eram só parte da fantasia
branca que seu par de genes recessivos para cor de pele havia imposto desde o
colapso dos gametas. Albina. Sua carapaça branca ainda tingia-se do branco do
protetor solar, acortinada pelos cabelos que combinavam com o de sua avó.
Carregava a expressão da face feminina da Monalisa: aquele ar extraterrestre
dos rostos sem sobrancelhas. Carregava também um caderninho de capa preta com
seus poemas e seus desenhos proibidos.
Os desenhos proibidos agora se desfazem
enquanto o papel derrete embaixo do mundo aquático. Eram tudo um só: mil cópias
do Homem Vitruviano que a albina enxergava ao ver o corpo do rapaz se alongando
na beira da piscina em dias de natação. Mesmo que ela sequer soubesse o nome do
rapaz, pelo mesmo motivo que não sabemos o nome dela, havia paixão e gozo na simples
transcrição da anatomia do nadador. Isso porque, incansavelmente, os olhos rosados
dela tinham que percorrer os pequenos detalhes dele enquanto provocava o fetiche
em conter a vontade de gritar: seu lindo, olha pra mim, bem aqui, esse ponto
branco na arquibancada! Mas a arquibancada era branca, então ela estaria camuflada,
assim como estava todas as vezes em que ele tinha a hipótese de notá-la ao seu
lado, com os olhos crescidos atrás das lentes da lupa que usava para desenhar
mais perfeitamente os círculos psicodélicos que eram as digitais dele.
Talvez essa ignorância fosse só paranoia,
pois no dilúvio cujo nível crescia e cresceu até que aquele aguaceiro cruzou
todo cerrado e fez foz no Atlântico, surgiram uns braços nadando entre as
marolas e borbulhas em volta da albina. Braços que de longe ela identificou como
pertencentes ao Homem Vitruviano, não esticados entre a perfeição dos vértices
de um quadrado sobrepondo um círculo, mas nadando apenas. Braços que se achegaram
e pararam os movimentos natatórios. Por um breve instante, os dois boiaram
frente-a-frente, ninguém disse palavra, nem as palavras inaudíveis que só os
olhares fazem, por causa do balanço frenético das ondas e do rufar incessante
das asas dos albatrozes. Mas, de repente, ele levantou aqueles braços e pôs as
mãos sobre aqueles olhos rosados que, aliás, eram a torneira pela qual saía a
torrente de água.
Acontece que, na noite anterior, a albina
fora dormir pensando no quanto queria tocar, cheirar, brincar com os cinco
sentidos e todas as frutas da salada mista junto ao nadador. E deixara a
torneira tão aberta que na horinha em que o nadador interrompeu a torrente com
as mãos, seu organismo que, assim como o meu e o teu, seria 70% composto de
água era uma enrugada uva-passa, seca, pequena e, finalmente, não mais branca:
vermelha. Vermelha pelo sangue comprimido e de vergonha, afinal sentia o toque das
impressões digitais que já havia mapeado há muito tempo.
Quem diria, ela se ruborizou mais ainda
quando o nadador tirou as mãos dos olhos rosados e lá pôs o sebo de seus próprios lábios
para enfim as lágrimas coagularem.
Bom texto! Parabéns!
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