Meu menino, vem cá,
senta aqui do meu lado e conta tudo o que tem na sua cabeça. Sei que você anda
apaixonado e que as cordas do seu violão já não funcionam mais, mas me conta os
detalhes das suas coisas pra eu me esquecer das minhas, que são ruins demais da
conta. Vai, diz como é que a Camila está, aliás, eu não tenho visto aquela criatura
desde o ano novo, quando nós nos beijamos embaixo dos cachos de fogos de
artifício, bem no fim do coro da contagem regressiva... E não tenho me apegado
a ninguém mais desde então, não só por causa das feridas que crescem ao redor
da tatuagem de coração que fiz no peito para substituir o órgão que me veio
faltando desde o nascimento, mas também porque não tenho vontade. É, a idade
chega, acho que está na hora de me aposentar dessas aventuras românticas. Já
sobrevivi até os dezessete anos, não brinco mais com isso! Sabe, eu tenho
saudade do dia em que você foi lá em casa e sentamos no sofá e era domingo,
passava o Faustão e mais um monte de merda, só que a gente não queria ver o
documentário da Cultura que mostrava a vida animal, então abri um livro de
poema e lemos tudo em voz alta, depois ouvimos Smells like teen spirit no
último volume até que o vizinho começou a reclamar, mas nem entendemos o
motivo, já que estávamos ouvindo no fone de ouvido do meu mp3 e rimos sem
parar... Tenho saudade desse dia porque foi a última vez que a gente se viu, você
nunca mais mandou mensagem, meu celular vive apitando pelos cantos empoeirados
da minha casa e eu nem corro mais até ele parar ver se a mensagem é sua, porque
eu sei que é alguma coisa da operadora de telefonia.
Meu menino, se sua cara
não fosse tão parecida com a minha, eu não diria que eu estou conversando com
meu reflexo do espelho do armarinho do banheiro.
A hora íntima
Quem pagará o enterro e
as flores
Se eu me morrer de
amores?
Quem, dentre amigos, tão
amigo
Para estar no caixão
comigo?
Quem, em meio ao funeral
Dirá de mim: - Nunca fez
mal...
Quem, bêbado, chorará em
voz alta
De não me ter trazido
nada?
Quem virá despetalar
pétalas
No meu túmulo de poeta?
Quem jogará timidamente
Na terra um grão de
semente?
Quem elevará o olhar
covarde
Até a estrela da tarde?
Quem me dirá palavras
mágicas
Capazes de empalidecer o
mármore?
Quem, oculta em véus
escuros
Se crucificará nos
muros?
Quem, macerada de
desgosto
Sorrirá: - Rei morto,
rei posto...
Quantas, debruçadas
sobre o báratro
Sentirão as dores do
parto?
Qual a que, branca de
receio
Tocará o botão do seio?
Quem, louca, se jogará
de bruços
A soluçar tantos soluços
Que há de despertar
receios?
Quantos, os maxilares
contraídos
O sangue a pulsar nas
cicatrizes
Dirão: - Foi um doido amigo...
Quem, criança, olhando a
terra
Ao ver movimentar-se um
verme
Observará um ar de
critério?
Quem, em circunstância
oficial
Há de propor meu
pedestal?
Quais os que, vindos da
montanha
Terão circunspecção
tamanha
Que eu hei de rir branco
de cal?
Qual a que, o rosto
sulcado de vento
Lançará um punhado de
sal
Na minha cova de
cimento?
Quem cantará canções de
amigo
No dia do meu funeral?
Qual a que não estará
presente
Por motivo
circunstancial?
Quem cravará no seio
duro
Uma lâmina enferrujada?
Quem, em seu verbo
inconsútil
Há de orar: - Deus o
tenha em sua guarda.
Qual o amigo que a sós
consigo
Pensará: - Não há de ser
nada...
Quem será a estranha
figura
A um tronco de árvore
encostada
Com um olhar frio e um
ar de dúvida?
Quem se abraçará comigo
Que terá de ser
arrancada?
Quem vai pagar o enterro
e as flores
Se eu me morrer de
amores?
Vinicius de Moraes
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