Debaixo da escada, feito o Harry

— O que é você?
— Um monstro.
— Você mata?
— Não.
— Você come gente?
— Não.
— Então o que você está fazendo no meu guarda-roupa?
— Eu não estou no teu guarda-roupa.
— Onde você está?
— Na tua cabeça.
— Fazendo o quê?
— Estou fingindo estar no teu guarda-roupa para evitar que tu durmas.
— Por que eu não posso dormir? Eu estou com sono.
— Por causa do incêndio.
— Que incêndio?
— Aquele em que tu serás a única sobrevivente.
— Aqui em casa?
— Sim.
— Que dia?
— Hoje.
— Meu deus, eu tenho que acordar meus filhos.
— Eles não ouvirão.
— Por que não? Claro que vão, é só eu chamar.
— A porta está trancada. Tu não conseguirás sair.
— Impossível. Esta porta não tem fechadura.
— A porta do teu quarto não tem fechadura. Esta porta tem.
— Mas eu estou no meu quarto!
— Não estás, não.
— Onde eu estou?
— Na despensa debaixo da escada.
— Não. Eu me lembro bem de ter entrado no meu quarto, deitado em minha cama, sob minha coberta e ter desligado o abajur. Eu não posso estar no quartinho debaixo da escada.
— Todas essas coisas, sim, foram feitas. Mas as fizestes tu ontem, não nesta noite.
— Só que lá é pequeno demais e escuro demais. Eu teria percebido.
— Tu consegues enxergar agora?
— Não.
— Por quê?
— Por causa da escuridão, oras. Acabei de apagar meu abajur.
— Logo, acende-o.
— Cadê meu abajur?
— Desde quando teu abajur fica na despensa debaixo da escada?
— Quem me trouxe pra cá?
— Eu.
— Você me trouxe e depois entrou na minha cabeça...
— Sim.
—... Para me salvar de um incêndio. Não faz sentido.
— Estás certa, só faz sentido depois que descobrirem que a culpa são dos pavios das velas.
— Velas? Pare com este joguinho sujo.
— Tudo bem. Eu nem te incomodava quando começaste a interrogar-me.
— Faz bem em voltar ao silêncio.
— Então tu vais colaborar e ficar aqui, sã, até que termine o fogo de pegar em tua casa?
— Vou.                                                                                        
— Por que fizeste esta escolha?
— Não era isso o que queria? Pois tem.
— E seus filhos, não te importam?
— Eles vão se safar.
— É só por curiosidade. Vai, conta o porquê desta escolha.
— Pois que de uns segundos pra cá eu vim sentindo um cheiro de...
— Fumaça?
— Sim. Você também sente?
— Eu não tenho nariz. Meu deus esqueceu-se de fazer-me um.
— Que pena.
— Eu sei. Mas posso ver além das paredes e confirmo o que te diz o teu nariz: tem mesmo muita fumaça nos cômodos desta casa.
— Por que eu?
— Quê?
— Por que você me escolheu pra sobreviver ao incêndio? Poderia ter privado a vida dos meus filhos, coitadinhos, mas privou a minha.
— Bem, eu gosto de mentir para as pessoas. E tu caíste. Tu tens aquela carinha de gente inocente que mesmo em situações ruins não se deixa ficar histérica, então achei que seria mais fácil.
— Você mentiu pra mim?
— Algumas vezes.
— Isso quer dizer que você não é um monstro?
— Não. Eu sou mesmo um monstro.
— Quer dizer que eu não serei a única a sobreviver ao incêndio?
— Bingo!
— Que bom que tudo vai ficar bem e ninguém vai morrer.
— Este não é o ponto.
— Então o ponto é que eu serei a única a morrer?
— Sim, este é o ponto.
— Por quê?
— A resposta é fácil: tu estás presa debaixo da escada, num espaço pequeno e sem ventilação. O ar tem de acabar uma hora ou outra, não é? Não deves ser tão egoísta, a atmosfera não é só tua.
— Você quem me trouxe aqui, eu não tenho culpa nenhuma!
— Claro que tens. Foi por tua causa que eles acenderam as velas.
— Oh, meu deus, é verdade: foi ontem à noite que eu fui para o quarto e deitei na cama e apaguei o abajur. Hoje foi meu aniversário!
— Que bom que retornas a tua consciência. Dali a pouco, tu retornarás ao pó que nunca deveria ter deixado de ser.
—...
— Não fiques triste, é esta a ordem da coisa. Tu nasces, tu morres, tu nasces, tu morres.
— Acho que vou ficar histérica.
— Isso não vai acontecer, menina.
— Ao menos você sabe ser gentil.
— Em que sentido?
— Ah, você sabe, eu não sou assim tão menina como eu costumava ser.
— Sério? Engraçado, está tão escuro aqui que nem posso ver teu rosto. E tua voz me parece tão melodiosa que pensei que tu fosses uma mocinha!
— Quem me dera ser uma mocinha. Esses tempos já se foram. Hoje mesmo eu completei oitenta e três anos.
— Só não lhe desejarei felicidades porque falta pouco para que tu morras.
— Desgraça! Eu não queria morrer.
— Se não quisesses morrer, deverias ter apagado as malditas velas.
— Espere um pouco, eu já sei de que velas você está falando. São as velas do bolo, não são?
— Um bolo muito saboroso, por sinal.
— São ou não são?
— Sim. São aquelas malditas velas do bolo, as oitenta e três. Uma hora tu terias de bater as botas. Mas para já com este choro estridente! Para, que agora nem mais uma menina te pareces, e sim um neném chorão.
—...
— Tem de entender que qualquer que fosse o pretexto, incêndio ou afogamento, não importa, já é tempo!
—...
— Veja só o que temos aqui: uma menina forte e saudável. Já escolheu o nome dela, senhora? Toma, toma, pode segurar sua filha.



2 comentários:

  1. hahaha
    Acho que fez o desejo errado para suas velinhas de aniversário, minha senhora ^^,

    Curioso monstro!
    hmm... um ceifeiro? Ou melhor dizendo: Um ceifador!?
    São um dos poucos que podem tirar e dar a vida... Mas não o vejo como monstros... questão de perspectiva e austeridade...

    Ok
    I liked! ^^,

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  2. Os monstros que habitam a mente são os piores.
    Os meus se reproduzem por mitose, é terrível, mas estou conseguindo adestrá-los.
    Muito bom o diálogo, as vezes elaboro alguns, mas sempre me perco neles.
    Achei muito fria essa senhora, a notícia de que seus filhos seriam mortos nem a abalou; sinto que isso tenha um motivo (talvez eu não tenha percebido do texto), mas entendo que ela, pela idade, tenha desistido da luta e aceitado a condição humana que se limita a espera da morte.
    A escolha da trilha sonora =OOOOOOOOO
    Beirut é um dos meus favoritos, todos esses instrumentos, nessa harmonia que vira um som impressionante, não falando da voz.

    o.O

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