O complexo da solitude e o Homem Vitruviano II


O peixe boiava morto no aquário redondo da mesinha, quando ela acordou toda molhada, o pijama e a cabeleira armada, pensando ter mijado uma caixa d’água inteira.
Sentou-se. Tateou a parede e apertou o interruptor que deu início ao jogo elétrico do sopro na sequência de dominós em pé: uma cadeia que não acabou com um último dominó deitado, mas com uma lâmpada acesa, claro. Após a dor que a luz repentina deu naqueles olhos rosados, viu o quarto inundado, um mar em quatro paredes cujas algas, corais e navios naufragados foram trocados por livros, quadros, meias sem pares e o restante da mobília. E antes que pudesse correr por sobre a cama para chegar até o extremo oposto do quarto, onde havia uma porta fechada, a água já havia alcançado seu pescoço, porque subia vertiginosamente rápida.
No outro cômodo, dormia um cachorro peludo. Talvez ele sonhasse no exato segundo em que sua narina foi inspirar o que pensava ser ar, mas era a água que explodira de repente a porta do quarto ao lado. Morreu enquanto a água foi adentrando a casa na forma de uma onda em cuja crista surfava frustrantemente a moça de olhos rosados.
A onda circulou a mesa de jantar, levantou o sofá, ultrapassou umbrais, deu com a porta da frente, quebrou-a, venceu o muro de dois metros, crescia, foi parar na rua e, em segundos, a cidade boiava num dilúvio embaixo de um céu azul, sem nuvem. A merda toda era que não existia um deus naquele lugar que tivesse mandado a menina construir com antecedência um barquinho de lego.
Assim que as árvores mais altas da rua começaram a ficar submersas, surgiram uns braços nadando entre as marolas e borbulhas em volta da menina cujas íris cor-de-rosa eram só parte da fantasia branca que seu par de genes recessivos para cor de pele havia imposto desde o colapso dos gametas. Albina. Sua carapaça branca ainda tingia-se do branco do protetor solar, acortinada pelos cabelos que combinavam com o de sua avó. Carregava a expressão da face feminina da Monalisa: aquele ar extraterrestre dos rostos sem sobrancelhas. Carregava também um caderninho de capa preta com seus poemas e seus desenhos proibidos.
Os desenhos proibidos agora se desfazem enquanto o papel derrete embaixo do mundo aquático. Eram tudo um só: mil cópias do Homem Vitruviano que a albina enxergava ao ver o corpo do rapaz se alongando na beira da piscina em dias de natação. Mesmo que ela sequer soubesse o nome do rapaz, pelo mesmo motivo que não sabemos o nome dela, havia paixão e gozo na simples transcrição da anatomia do nadador. Isso porque, incansavelmente, os olhos rosados dela tinham que percorrer os pequenos detalhes dele enquanto provocava o fetiche em conter a vontade de gritar: seu lindo, olha pra mim, bem aqui, esse ponto branco na arquibancada! Mas a arquibancada era branca, então ela estaria camuflada, assim como estava todas as vezes em que ele tinha a hipótese de notá-la ao seu lado, com os olhos crescidos atrás das lentes da lupa que usava para desenhar mais perfeitamente os círculos psicodélicos que eram as digitais dele.
Talvez essa ignorância fosse só paranoia, pois no dilúvio cujo nível crescia e cresceu até que aquele aguaceiro cruzou todo cerrado e fez foz no Atlântico, surgiram uns braços nadando entre as marolas e borbulhas em volta da albina. Braços que de longe ela identificou como pertencentes ao Homem Vitruviano, não esticados entre a perfeição dos vértices de um quadrado sobrepondo um círculo, mas nadando apenas. Braços que se achegaram e pararam os movimentos natatórios. Por um breve instante, os dois boiaram frente-a-frente, ninguém disse palavra, nem as palavras inaudíveis que só os olhares fazem, por causa do balanço frenético das ondas e do rufar incessante das asas dos albatrozes. Mas, de repente, ele levantou aqueles braços e pôs as mãos sobre aqueles olhos rosados que, aliás, eram a torneira pela qual saía a torrente de água.
Acontece que, na noite anterior, a albina fora dormir pensando no quanto queria tocar, cheirar, brincar com os cinco sentidos e todas as frutas da salada mista junto ao nadador. E deixara a torneira tão aberta que na horinha em que o nadador interrompeu a torrente com as mãos, seu organismo que, assim como o meu e o teu, seria 70% composto de água era uma enrugada uva-passa, seca, pequena e, finalmente, não mais branca: vermelha. Vermelha pelo sangue comprimido e de vergonha, afinal sentia o toque das impressões digitais que já havia mapeado há muito tempo.
Quem diria, ela se ruborizou mais ainda quando o nadador tirou as mãos dos olhos rosados e lá pôs o sebo de seus próprios lábios para enfim as lágrimas coagularem.



Um comentário: