Os dragões não conhecem Alto Paraíso


Ele não estava sozinho na multidão dos pequenos objetos mortos que pendurava no pescoço numa sobreposição colorida de cordões e coquinhos, tudo embaraçado em seus longos e duros e torcidos cabelos de medusa. Ele variava os pés nos passos marcados que até hoje podem ser vistos, solitários, desenhando um ziguezague entre os rochedos da trilha da velha cachoeira. O sereno ainda caía, porque era manhã recém-nascida e o mato cinza cheio de marcelas ia sendo penteado pelos dedos sujos de tabaco do viajante, ele.
Num segundo sedento por água, a cidadezinha lhe apareceu à frente. Tinha no chão as gentes de todas as décadas que não fossem esta; tinha no céu os círculos alaranjados vindos dum lugar mais longe do que aquele além da trilha da velha cachoeira. Sabia de cor o labirinto das poucas ruas e seguiu pelo conhecido caminho tão reto, tão perto, até a casa. A casa tinha a porta da frente aberta, assim como ele havia deixado quando saíra, dias atrás, para que entrasse o vento que mataria o mofo abafado dos quartos trancados dos viajantes que vão e se demoram.
Sim, a cidadezinha tinha ladrões, mas a casa não tinha nada para se roubar. Tudo o que o viajante tinha cabia e já estava bem guardado na sua mochila. Na casa, ninguém o esperava, só a janela. Porém a janela não era ninguém, apesar de servir-lhe também como companhia para olhar o namoro dos adolescentes tempo e mundo, de mãos dadas lá fora, na rua.
O viajante chegou em casa; ainda assim viajava, pois nascera na terra dos homens que vão perdendo a vontade de ter nascido. Dormiu num canto, sobre o chão que não era mole ou sequer duro desde quando seu corpo se conformou com o desconforto, e acordou se lembrando da terra dos homens que vão perdendo a vontade de ter nascido. Sentia agora mais forte que nunca a força do elástico puxando-o de volta para o berço e notou uma saudade, daquelas saudades que não sabemos do quê, bem na frente do seu pé, atrapalhando seu caminhar. Foi assim que a janela aconselhou numa ilusão de seus monólogos que a hora era meio-dia e era hora de ir embora, deixar de ser viajante, pingando de canto em canto, tentando achar o lugar a que pertence, fingindo desconhecer que a geografia da sua vida ditou bem clara que deveria viver para sempre na terra dos homens que vão perdendo a vontade de ter nascido.
E sua vida ia pacata, ele sabia, feito um conto que não acaba e só descreve um dia-a-dia cansativo de uma personagem cuja história, do nascer ao morrer, careceu de clímax. Sob a unha que coçava a barba rala, via o gelo da fina crosta nevada envolvendo sua pele de superfície de freezer, porque, ele sabia, seu coração era um refrigerador. E via nascer no cocuruto fios de cabelo brancos a cada vez que trocava olhares de mútua súplica por amor com pessoas que ele se cruzava na rua.
Já era velhinho então quando decidiu voltar para a terra daqueles homens que, feito ele, também tinham vontade de não ter nascido jamais. Soprou a gaita naquela manhã, tomando de desjejum o ar das notas que se chupa, visto que sua miséria não lhe permitia o luxo da comilança diária. Foi quando começou a reparar nuns espectros no canto dos olhos, com forma humana e tudo mais. Eram pessoas, mas que surpresa! E eram pessoas que ele via todos os dias e não reparava até então. Elas fariam falta, droga, como fariam. Vieram as lembranças dos dias bons, bem comprimidas e empacotadas nos frágeis e invisíveis souvenires que o viajante foi recebendo depois de cada abraço de despedida. Afinal, existiam pessoas, existiu clímax, como na vez em que uma delas, uma amiga, ora!, virou e perguntou:
Posso te dar um abraço?
Claro, mas, por quê?
Porque toda vez que alguém morre, eu sinto um trem ruim, como se eu tivesse perdido a oportunidade de ter abraçado ele quando ainda tava vivo. Sabe?
Bem, não sabia. Não sabia até o momento de despedida. Só não podia abraçar a cidade, nem suas nuvens, embora voassem baixinho, quase ao alcance de suas longas mãos. Foi embora. O caminho que tomou era um asfalto cuja dureza impedia que se formasse um rastro poético igual ao que até hoje se pode avistar saindo em ziguezague da velha cachoeira. E nisto, teve a impressão de que não saberia como voltar para aquele lugar, um João sem Maria e sem as migalhas de pão trilhando o rumo da casa que deixou para as bandas de lá. De fato, perdeu-se para sempre. Teve outra impressão também muito precisa, a de que tinha deixado outro onde a que pertencia e a partir de então estaria amarrado numa saudade de sempre estar do outro lado. Sentiu um elástico puxando-o em direção à cidadezinha enquanto o elástico da cidade grande começava a relaxar, conquanto ainda sentisse duas pressões contrárias, forças prontas para partir seu corpo ao meio. 
Era o fim. Morreria, pensou. E nem tinha janela para lhe dar bons conselhos. Tinha um espelho, ia mudando ao passo que voltava ao mundo dantes. Raspou os cabelos de medusa e trocou os penduricalhos do pescoço, a bata folgada, as sandálias, por limpas e cheirosas mudas de roupas, um sapatinho de cadarço, uma medalhinha de São Jorge. Mudou até o nome, variando a sílaba tônica para aquela com que lhe chamavam na terra dos homens que não têm vontade de... bem, já sabemos, porra.
No mesmo  processo das famosas bonecas russas, de onde sempre saem de dentro bonecas menores, o viajante tirou a mochila das costas e tirou da mochila uma sacola. Da sacola, tirou um caderno e dele tirou uma folha. Uma folha que, sem casulo, metamorfoseou-se num pássaro saltitante cujas asas tiveram de ser rapidamente recortadas por causa de sua vontade de acompanhar os círculos alaranjados no passeio através das nuvens da cidadezinha que ia ficando para trás.




11 comentários:

  1. Respostas
    1. Gente, pra quem não sabe, esta foi a pessoa que virou e perguntou se poderia me dar um abraço.

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    2. Sim, nosso abraço foi muuuuuuito coletivo hehe

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  2. Só mais um comentário, Kaito : obrigada!

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. "Eram pessoas, mas que surpresa! E eram pessoas que ele via todos os dias e não reparava até então. Elas fariam falta, droga, como fariam."
    Que lindo, me senti totalmente nesse texto. Saudades de Alto Paraiso e dos caminhos mágicos que trilhamos por lá.

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  5. Parabéns Kaito, ficou muito perfeito seu texto.
    Expressou tudo o que sinto por esse povo, haha

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  6. Não sabia que tinha gostado tanto desse lugar.

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