Cartilha brasileira para plantar ufania

"Agonia refletida"

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Passa um braço de vento esbarrando na aba do chapéu de palha de Aarão.
Aarão abana o ar pra tentar sacar o chapéu, mas ele vai girando além da janela do apartamento e planando nas alturas. A palha do chapéu está tonta, some através das edificações tatuadas de luz solar; o sol já se pusera bem longe, mas que ilusão de refração da lente atmosférica! Aarão observa. Espirra. Volta para 1500.
Cento e poucos anos antes de 1500, no reino de Aragão, um parlamentar escrevera um pedido num envelope de carta: gostaria de navegar até a Índia pelo trajeto oposto, porque darei uma volta na aresta quadrangular da Terra e darei comigo lá. Pôs um papel branco dentro do envelope e deu-o ao rei, que dormia na cátedra ao seu lado.
— Desde quando a Terra é quadrada? Perguntou o rei.
— Desde quando deus a fez.
— Pois não conheces a profundidade da terra a ceder-nos milho e beterraba, nem a profundidade do azul aquoso marino?
— Sim, e daí?
— Se a Terra tem fundo, não pode ser quadrada. Quadrados são planos. No mínimo, é um cubo.
 E o parlamentar montou num burro, colocou-o sobre um dos três bilhões de barcos a vela que iam junto a ele em expedição. Ouviram-se três sinais. No primeiro, todos os marujos pegaram o palito de fósforo. No segundo, todos os marujos passaram fogo no palito e, do palito, aos pavios das velinhas presas nos mastros. Sopraram o fogo, ganharam impulso, deslocaram-se. Riscos, palitos, pavios, sopros, deslocamentos. Em 1500 chegaram até Índia errada aqueles que não haviam cuspido pulmões para velejar.
Mas não chegaram do mesmo jeito que de Portugal saíram. Foi que os barcos a vela da expedição do parlamentar luso, no meio do caminho, toparam com uma embarcação grande de ferro, metálica, movida a motor, que ia à direção contrária.
— Quem são vocês? Perguntaram os índios lá em cima da embarcação de ferro. Os portugueses ouviram ruídos animalescos, pois não entendiam linguagem indígena.
— Olá!
— Quem são vocês? Se não disserem agora, lançaremos tiros de canhão!
Mas nem atiraram, já que os lusitanos enfeitiçaram-nos com cacos de espelho e lantejoulas. Dominaram seus navios. Desmontaram dos burros, largaram os palitos de fósforo — que após o uso eram lançados ao mar para, feito João e Maria, lembrar-se do caminho de volta —, giraram o volante, foram para a Índia errada, cujos esporos, filhos índios, já saíam além-mar para colonizar terras novas.
1500. Matas esverdeadas chegam a níveis estratosféricos. Certa espécie de planta vai tão alta que roça a lua em ventanias, diziam os pajés, civilizando os portugueses. Todos estão em roda numa reunião da tribo e as crianças de cabelos lisos em cuia dançam a dança da chuva. As caboclas pretas mostram as coisas todas, sem nenhuma vergonha, porque ninguém ali foi tosco bastante para comer maçã. Aliás, maçã não dá em trópicos.
Na metade da noite, há o ponto alto do festim: o sacrifício dos escravos. Vai andando ritmada uma fila de moços pretos, saindo da porta da oca maior, e, no que aparece um homem branco na metade da fila, grita um português:
— Um branco! Lá! Libertem o branco!
O branco deixa a fila a rodo de risos, vermelho de risos.
— Meu nome é Aarão. Por favor, levem-me com vocês, não aguento mais esta vida pacata de coleta de peixes e frutas, de flechas, de pinturas corporais, de lutas nuas entre homens... No que me deu de espirrar em meu apartamento na cidade grande, vim parar nestas terras. Sou do futuro, juro. Não pertenço a esta idade.
Aarão chora.
— Aarão, tu és um de nós.
— Que alívio, meu bom Jesus, vou-me embora, então?
Aarão já vai tirando a penugem colorida dos colares, já vai limpando a maquiagem pesada de urucum. Os lusitanos estão muitíssimo felizes, lambem os lábios, babam.
— Aarão, vem conosco, entre naquela caldeira de água quente e logo tudo estará resolvido. Os portugueses o deixam de molho na água, que começa a ferver. Os índios, ao perceberem a mentira do ato, tratam de salvar o prisioneiro branco da caldeira, pois a legislação da época já extinguira há tempos o que os lusos estavam para fazer: o canibalismo. E outra vez os europeus têm de ouvir do bê-á-bá indígena, mas ainda não aprendem. Nunca vão.




P.S. Perdão se falta conexão entre o desenho e a história anexa, é que também me falta inspiração. 

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