O que se ouve de dentro da concha


Quando as estrelas começarem a cair, me diz, me diz, pra onde é que a gente vai fugir? 

Cliquem pra ampliar e vejam o detalhe da roda

Assim morre o último homem. De olhos abertos que vão murchando, secando, o foco pairando por ali, além, e não há ninguém para fechar suas pálpebras. Ninguém que vele choroso pela derradeira lembrança da história de todos os homens que morreram antes.
O tempo, porém, continua. E passa. O sol está se apagando, no que as árvores vão padecendo, no que as chuvas cessam, no que a água salgada torna-se sal e nada, no que a água doce é um rio, então um laguinho, então uma poça e tão logo uma gota, que seca. Ao passo que os dias já duram cinquenta horas, porque desde a gênese terrestre a cada século o dia cresce um milésimo de segundo.
A atmosfera, como aquela velha casca azul, some: a Terra é negra, diria nosso cosmonauta, e gira com barulho, pois no núcleo suas roldanas arranham, as rodas dentadas rodam com dificuldade, visto que lhes faltam graxa, as molas fungam, rijas. Há fumaça que escapa dos poros vulcânicos e vaza para o céu de nada que não está em cima, nunca esteve, mas sim ao redor; e já retrocede.
Tudo tende a juntar-se agora, tudo é ímã.
De repente, as estrelas começam a cair, enquanto o sol relampeja fortemente uma última vez, para então vir a óbito. Apaga-se. Nunca seria uma supernova, talvez na próxima vida, quando as coisas voltassem a se espalhar e afinal os espíritas estavam parcialmente corretos. Outra vida. 
Por fim, o fim que é o 360 grau de um transferidor pronto para se tornar o grau zero, circularmente, ali está o ponto que guarda toda a matéria, louca para se expandir, novamente. Portanto, o faz. Assim, vemos um diafragma, indo e voltando, bem no meio do processo de respirar. O cosmos respira. Por um número macro de vezes tem de dilatar e se reunir até que a fórmula da vida dê certo de novo.
Vê-se pessoas pensando mais uma vez na superfície de um lugar qualquer fluindo no meio da vastidão escura. Vê-se a sombra delas, eclipsadas pela luz de um sol. A maioria das pessoas é feita de pedaços que já integraram planetas, pedras e terra, coisas de natureza não-viva, noutras vezes, noutros ciclos, noutras vidas, mas umas poucas contêm pedaços que foram parte das pessoas de um passado atrás do vaivém da matéria. Uma coincidência que não chega a levar ao sobrenatural: a escuridão é grande, mas a realidade é contida.
Porém foi num dia normal, nesse mundo, com essas gentes e a história delas, que o diafragma fatigado dava sinais de que ia parar de se respirar. Sem que ninguém imaginasse, a realidade passou a expandir ao invés do que por tanto tempo, desde que era, expandia mesmo que para recuar num dia.
Pois num instante de mistério, um estalo na mão do mágico, eu que há tempos estava deveras morto, acordei-me no meio do pensamento interrompido pelo capô do caminhão. Houve um lapso, entrementes. Desgrudei-me de meu réquiem que nunca me pareceu eterno, nem sequer pareceu-me. E se antigamente me sentia tão sozinho, sufocado de corpo inteiro por abraços intangíveis, de repente vi-me dividindo a mente com alguém.
Nós dividíamos pedaços. Dividíamos o tempo e o espaço. Do espelho por onde saía a imagem do meu anfitrião, eu vi seu rosto identificando minha presença através de uma careta agônica e de suas mãos que não paravam de agarrar seu próprio pescoço, como se para tirar a coluna espinhenta de peixe em sua goela, mas que na verdade era eu. Eu dominando-o, vendo seu rosto descascar, a pele desgrudar em camadas grossas que pouco a pouco vão mostrando minha face sobressaindo, dando lugar à sua. Porque estou louco para sair do estado intrauterino, louco para dar conta de vencer a ignorância e saber o que se passou.
O que se passa? Por que tudo que vai agora não volta, como no dia em que a bola de futebol ficou presa no ar quando a chutei? Tenho tantos déjà vu, vejo uma nova cor, por quê?
Por enquanto, eu me perguntava se vivia, as estações mudavam, as televisões transmitiam, o céu parava de crescer, cansado, até que gemeu numa tarde muito, mas muito, amarela, e travou-se. Os cacos do prato se quebrando pararam, as fumaças do chá, da chaminé, do charuto do meu avô, pararam, as partículas de luz também (ficou amarelo para sempre), assim como o carro capotando, o espermatozoide fundindo com o óvulo, os lábios de dois virgens quase se tocando, o fogo do fogão queimando o dedo do menino teimoso: todos os gerúndios jamais terminariam.
Em grande escala, uma palavra que ainda não foi dita por vergonha de usá-la pela enésima vez, o universo, que era uma elipse perfeita em questão de reciclagem, teve dois pontos extremos torcidos para lados contrários, atando um nó no centro. Imagine.
Imagine os últimos homens inertes. Imagine os fins das fábulas, nosso lindo para sempre, começando bem ali. Estático. Silêncio. Infinito. E por infinito entende-se que lá todos os traços paralelos se chocam.

Nota: um dia eu ainda termino essa história ou dou-lhe um começo.


Um comentário:

  1. Como não tinha lido nada seu ainda Kaito, dei especial atenção à sua divagação hj, depois de ter ficado 'out' da internet o feriado todo e ter encontrado tantas informações aqui e agora. Como disse, sua capacidade de divagar=fantasiar é interessante e ao mesmo tempo realista e contemporânea. Um elogio a todos que escrevem pro site, estou gostando da organização de vcs. Dá pra perceber a diferença no estilo de cada um. Parabéns!!!

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