Todos os kamikazes rezam no final


O nascimento de Vênus

Então você fica sem falar comigo esse tempo todo como se quisesse ajustar os anéis dentados da manivela quebrada, no que os motores destravam e as roldanas funcionam: fabrico saudade. Vim aqui para contar uma história para você. Sorria para mim no final. Obrigado.
Conheci um cara meio homem, meio lagartixa. Ele não escalava paredes, não me dava pavor, não comia inseto, mas herdou do avô a magia que uma lagartixa usa para fazer crescer outro rabo no lugar deste que cai.
A magia não é qualquer vodu de benzedeira velha que põe chá em sangue de galo e vende em vidro vazio de perfume caro. Esta magia veio do céu, era o pó de uma nebulosa que saiu dançando pelo universo e pairou sobre a cabeça do antepassado do homem-lagartixa. Mudou a configuração genética dele ao dar mais um nó num lacinho do núcleo celular. Sua natureza astrológica dizia que só estaria ativo diante da solidão massiva que somente as estrelas, tão longe no meio do escuro, estão destinadas a sofrer.
Não somente as estrelas, como provara o cara que conheci. Ele tocava seu piano de cauda que nunca teve, nunca terá, e nada mais o tocava. Tinha braços virgens de abraços, mas não podia pagar uma puta para pôr seu rosto no regaço enquanto os braços inocentes se gozassem no primeiro enlaço. Não que faltasse dinheiro, faltava a coragem da mulher da vida diante da gelidez daquele corpo ainda inexplorado.
Assim, num dia febril em meados de abril, o sol torrando aqui em casa e no resto do mundo, nevando dentro dele, aconteceu que o gene se ativou, o cromossomo remexeu, a célula se deformou e também sua vizinha, a vizinha desta, todas as outras! Ele gritou, disse pro doutor que não havia órgão nem fio de sobrancelha que não estivesse doendo, por isso levou para casa umas pílulas que anestesiavam o organismo inteiro, exceto a cólica do coração. Ficou inválido no sofá, me ligou no meio da noite para ir ajudá-lo a se levantar. Eu fui, mas não consegui ficar, porque chegar aos arredores dele doía na gente, doía nas coisas mortas: as paredes da casa racharam, a mobília murchou, os retratos embrulharam.
Tinha alguma coisa na magreza daquele corpo que pesava para cacete. Quem sabe essa coisa fosse o céu porque o cara também era Atlas. De repente, num grito que até então só se ouvia das mães ao parir, o peito dele se abriu e, das costelas arreganhadas feito portas, saltou um gêmeo sem umbigo que mal se achegou ao mundo e já foi bocejando, enquanto as portas do peito do outro se voltavam, intactas.
Nunca mais o Atlas ficou sozinho. Seu clone era o rabo da lagartixa que germinou para ocupar aquele lugar vazio que não era o fim da sua coluna, era seu lado. Existiu para conversar. Ora, para ficar calado também! Mas nunca deixar de ficar perto. Porque o Atlas já tinha aprendido algo que eu só fui aprender hoje, quando vi um filme aqui. Aprendeu que ficar perto não é físico.
E toda noite o homem sem umbigo sentava-se ao lado da cama do gêmeo. A mão dormente esticada para cima não caía, porque estava presa nos dedos da mão que pendia do sono do outro.
De uma forma ou de outra, eu sabia, eles sabiam, até mesmo as lagartixas sabiam que um dia ia acontecer o que acontece com seus rabinhos e com todos os amigos que sentem saudade: eles se separam. Amigos se vão simplesmente porque metade do mundo sempre vai estar na escuridão. Mas desta vez o amigo se foi num mundo completamente escuro.
Era um nascer de dia rubro em meados de outubro, o Atlas pulou de seu ninho de cobertas, atravessou a casa com pressa, puxou a porta da rua e só agora percebia que levava o gêmeo como apêndice de seu braço. Mas não havia tempo para se soltarem, porque sentiam que daqui a pouco ficariam soltos pelo resto do tempo e porque já corriam ladeira abaixo, entre os carros parados no sinaleiro, ainda que estivessem de pijamas e descalços e com aquele penteado punk que o travesseiro faz na gente.
Eles enfim alcançaram a avenida onde o destino havia marcado um xis e puderam avistar do outro lado da calçada a aparição que era senão o recorte da beleza renascentista de Vênus. Ela, que tinha nascido para desmistificar a natureza reptiliana do corpo de um Atlas que se perguntava onde estaria o par de anjos que soprava aqueles cabelos ruivos. Antes que o sinal parasse os vultos de lata, uns carros, uns ônibus, que embaçavam seus contornos, ainda houve um segundo em que ela ergueu seu rosto daquela expressão sonhadora que vemos na pintura para abri-lo num sorriso.
– Ela tá rindo para mim! Ouvi o cara cochichando pro irmão que sua solidão havia parido, quase como se falasse para si mesmo. Mas nesse instante o outro já havia se soltado e ia embora, pois seu caminho não tinha um xis nesta avenida, ia além.
O sinal fechou, o riso dela foi se achegando e o romantismo deu lugar à sensação de morte. O Atlas ia se rasgar sob a pressão de sua ânsia pelo beijo. Ah, deixa eu sorrir na sua boca, ele pensava, ao passo que ia provando a possibilidade de um encontro nas paralelas da faixa de pedestre. Faixa de pedestre? Não, ali era a rua deserta em cujas extremidades dois bandidos se preparavam para o tiroteio final de um filme de faroeste. E sua arma já estava apontada. Não, tudo errado, aquela rua não estava deserta: tinha gente olhando, eu olhava! Merda, ia morrer se provasse daquilo e tinha umas mãos que o tocavam por paixão já percorrendo seu rosto! Não, não ia morrer, mas rezou e enquanto punha os dedos no pescoço dela só conseguia pensar se todos os kamikazes também rezavam no final.
Então aconteceu aquilo que minha inocência disse ser mero eclipse total: o caminho do clone que ia além tinha virado de ponta-cabeça, depois cruzado a membrana da percepção humana e parado. Ele apertara o interruptor na parede da Terra e, de fiação em fiação, o sol desligou-se lá em cima só para dar privacidade ao beijo do outro.
Toda vez que eu penso na magia do rabo de lagartixa, me pergunto se ela também vai para as estrelas-do-mar caso o pó da nebulosa caia no oceano. E sempre me lembro da última vez que olhei para cópia do cara que conheci. Foi na avenida, no momento da despedida que não aconteceu. Ele foi seguindo o restinho de seu caminho balançando os braços para frente, para trás, no mesmo movimento que fazem as mãos do pai que ensina às suas meninas o jeitinho certo de se trançar as mãos e deixar na parede a sombra de uma pomba que voa.
Voou. 

Um comentário:

  1. Me intriga imaginar quantas mensagens ocultas não percebi ao ler este texto :) Muito bom!

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