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—Por que um cristal?
—A textura. Ele é liso
como céu. Ele é frio como céu. Você olha dentro dele e pensa ver o céu.
—Um céu bem pequeno.
—Ninguém sabe quantos
mundos têm aí dentro.
—Eu acho que tem como
saber o número.
—Exatamente?
—É.
—Como?
—Contando seu nível de
loucura.
—Pela altura que se pula.
—E se eu te dissesse que
pulo tão alto que voo?
—Aí eu diria que existem
bilhões de mundos dentro do seu cristal. Ele é até legal. Sabe, o formato e
tal. Um bacilo. Só não sei por que que você anda com um naco de pedra ao
invés de uma carteira no bolso.
—São as coisas, cara.
—As coisas poderiam ser um
pouco mais normais. Aquele fio que sai do poste tem tantos remendos e é velho;
queria que fosse trocado. Fico incomodado de saber que na próxima chuva, quem sabe, a
energia vai cair por causa de um rompimento bem naquele ponto. No que eu aponto.
E aí, com quem eu vou conversar? Até da energia a gente, eu, você e os mundos
todos, depende pra se falar. E se eu ficar sozinho por um dia
inteiro?
—Sozinho me dá arrepios.
Essa palavra. Ela é má. O diabo deve dizer isso pra chicotear os ouvidos de quem mora no inferno. Quando restar mais pessoa nenhuma na Terra, por causa do
apocalipse, e eu ainda ficar aqui, por causa dessa carapaça de azar,
vou mudar de malas nas costas pra algum planeta aqui dentro.
—Dentro do cristal?
—Sim. Sim. Nas profundezas
do cristal.
—Mas não teremos
apocalipse. No máximo, queda de energia causada por esses pedaços de fios que
ninguém troca. Quando crescer, vou financiar os vândalos da noite para roubar a fiação dessa cidade pra que coloquem uma nova no
lugar. É. Eles serão ricos, porque esses fios são recheados de cobre.
—Cobre não vai ter valor.
Vai ter valor só um pedaço... de abraço. Quando o apocalipse se achegar a nós,
vamos imitar os pinguins do gelo: vamos nos sentar bem perto uns dos outros pra nos esquentar.
—Pena dos pinguins.
—Eu sei: no fim da
história vamos nos esquecer de que foram eles que inventaram esta aproximação natural para não mais morrer... de solidão. E vamos ver os documentários
sensacionalistas sobre aquecimento global exclamando: vejam só os pinguins nos
imitando, já são quase homens.
—Isso mesmo. Mas não vem,
não, não.
—Quem?
—O apocalipse. Isso é coisa
de bíblia sagrada, efeitos caóticos, de borboletas, de nostradamus. É mentira.
E uma mentira muito poderosa.
—Quem disse?
—Eu. Ela é poderosa porque
é daquelas que tem a ver com o fim. Não o fim de tudo, ninguém consegue
imaginar um tudo para sequer sentir falta, e sim o fim dos pequeninos...
sentimentos finos: amor vivido, amor cantado, amor platônico, amor resumido,
amor de irmão, amigo, namorada. Isso dá medo. Isso faz gente rezar. Sabe que
começo a achar que é por isso que você está com esse cristal?
—Que nada. Não amo nada
para poder temer uma perda.
—Então me explica, só tive
rodeios e rodeios por resposta.
—O cristal caiu no meu
telhado numa noite de chuva de meteoros, ele veio lá do céu e me disse: vem o
fim em apocalipse. Desde então eu tenho essa pedra no bolso, para olhar e
admirar. Ela é só minha e, segredo, é tudo que eu tenho para amar.
—Cuidado na forma que ama
isso aí.
—Filho da puta, que sem
graça. É um assunto sério, se o tive por rodeios foi pra não vir o desespero.
Vai tudo acabar, cara. Tudinho, menos eu. E tão rápido, que o que nos separa do fim é um
tempo que cabe até num giro de relógio.
—Você tá com medo?
—Muito.
—Pelo menos o povo não vai ter tempo pra imitar os pinguins e eles vão se salvar. É por isso que você
trouxe mala? Você vai mesmo se mudar pra algum planeta aí dentro do seu
cristal, não é?
—É.
—Como vai ser? Bomba nuclear?
—Não, vai ser assim: vamos
ficar com sono, vamos cair no chão, vamos dormir. Todos. Mas só eu vou acordar.
Vou acordar, olhar e perceber que tô sozinho.
—Essa palavra.
—Eu sei.
—Dói como o céu.
—Não é?
—Agora existem infinitos
mundos dentro do cristal. Porque você está infinitamente louco.
—Piada não tem efeito,
esse medo dá anestesia.
—Segura isso aqui.
—Uma mão?
—A minha. Feito pinguim.
—Brigado.
—Uma pergunta: os bocejos
sempre vêm antes do sono? Sempre?
—Sempre. Pra substituir a
ordem de boa noite num beijo... um bocejo, sempre, sempre. Por quê?
haha, infinitos mundos!
ResponderExcluir"Não, vai ser assim: vamos ficar com sono, vamos cair no chão, vamos dormir. Todos. Mas só eu vou acordar. Vou acordar, olhar e perceber que estarei sozinho." Imaginei o suicídio em massa induzido por aquele religioso psicopata, vc despertando e observando centenas de corpos ao redor.
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