Segundo pedaço do finale da estória de Grégore Trévor.
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Esse é só o fim.
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O final
de Grégore Trévor, segunda parte
“Matá-los
todos? Vocês acham que sou o quê, seus imbecis? Nem eu sei o que eu sou, pra
falar a verdade. Vai ver sou mesmo a merda de um marciano. E pistoleiro ainda
por cima!”
As
pessoas, comendo como animais aqueles sanduiches gordurosos, me lançavam
olhares alarmados e furtivos. Uma coisa que me dissera aquele sujeito, apesar
do absurdo que representava, fazia sentido: eu sentia que não fazia parte
daquilo tudo a minha volta. Cabeças se viraram em minha direção quando elevei
minha voz.
“Quem?
Por quê? E por que eu?”
“Como
dissemos antes, você é de outro mundo” disse em tom de fatigada sapiência
aquele mais falante. “Não um outro planeta, nada assim, não físico. Mas de
alguma coisa como um universo paralelo; aquele em que habitam as nossas mentes.
Isso é só uma teoria, mas achamos que você é a manifestação de todos os nossos
ideais, só não teve tempo para tomar consciência deles ainda”.
“E o
Eugênio? Ele me disse que vocês eram canalhas e que fizeram mal a toda aquela
gente”. Eu tentava me agarrar a qualquer pedaço de argumentação lógica em que
pudesse colocar as mãos. “E que ainda por cima roubaram seu machado!”.
“O
Eugênio...” começou o de óculos outra vez, “Ele é uma figura quase mitológica.
Há muitos anos viaja entre essas duas dimensões. Pessoas mais sensíveis - gênios
até, eu diria - notaram sua presença deslocada e tentaram nos avisar”.
“Não
roubamos o seu machado”, atravessou o cara alto, “ Ele nos foi dado. Por alguém
que veio a nós numa nave. Não convém falar sobre isso agora. Só convém dizer
que ele nos foi dado para que o usássemos da maneira correta”.
“A
maneira correta é você!” disse o oriental, tão subitamente que assustou até os
seus companheiros e quase me fez saltar da cadeira.
Nesse
momento, uma comoção estranha pareceu tomar conta do lugar. Perto da porta
concentrava-se um número grande de pessoas. Algumas gritavam, outras exclamavam
sua surpresa com pequenos e patéticos Oh’s.
Foi quando irrompeu da porta um sujeito pachorrento, vestido com grossos
roupões, joias, uma coroa e até um cetro; gordo, com farta papada, bochechas murchas
e lábios cheios caídos. Logo depois um homem numa pesada batina negra apareceu.
Seguido por um rapaz moreno de camisa verde e amarela e cabelo ridiculamente
queimado. E, por último, com um sorriso sádico no rosto, um velho com uma
cartola branca decorada com uma faixa azul com estrelas brancas, um casaco azul
e gravata borboleta vermelha.
“Não
temos mais tempo. Já chegou a hora” disse o de óculos. E, de uma bolsa de couro
preto que esteve numa cadeira esquecida por todo esse tempo, tirou um objeto de
cabo comprido, brilhante e belamente ornamentado. “Faça aquilo que deve ser
feito. Acabe com os símbolos do que repudiamos e estará livre!”.
“Dom
João VI!... Padre Marcelo Rossi!... Neymar!... Tio Sam!...!” gritou algum incógnito,
exclamando o óbvio.
Os
quatro assentiram com rápidos golpes de olhar e me entregaram o machado. Era
pesado, brilhante, feito de algo parecido com mármore amarelado, mas maciço
como uma liga de ferro. Peculiares runas estavam inscritas nas faces da lâmina
deveras afiada. No cabo, duas regiões cobertas com tira de couro demarcavam os
locais onde empunhá-lo. Toda a superfície brilhava intensamente ao mínimo
contado de luz.
E foi
só quando agarrei firmemente entre meus dedos até então vacilantes o cabo - de
aproximadamente um metro e que carregava na ponta a grande lâmina de dois gumes
- que tudo me veio à mente. Sentimentos de ultraje, humilhação, ódio,
descontentamento: alguém tinha de morrer. E aqueles quatro invasores com caras
de estúpidos correndo em minha direção eram excelentes candidatos.
O primeiro
a cair foi Dom João. Bloqueei seu cetro e rapidamente direcionei a ponta do
cabo para o seu vasto estômago. O monarca vacilou e, enquanto ia se curvando e caindo
lentamente, ergui o machado sobre minha cabeça até que ele tocasse minhas
costas e desci a arma com todo o peso do meu corpo sobre si. Acertei o centro
do peito gordo do lusitano afeminado. O som da caixa torácica sendo arrebentada
encheu o ar e sangue quente esguichou violentamente, impregnando meus braços e
coxas.
No
tempo que demorei para retirar o machado das entranhas amarelas de gordura do
homem morto, Padre Marcelo e Neymar já se atiravam sobre mim de diferentes
lados. O jogador projetou sua perna na tentativa de me ferir com as travas
duras da chuteira. Mas fui mais rápido e decepei seu pé direito num preciso
golpe de mão única. Mas minha distração deu a oportunidade para o padre se jogar
sobre mim e passar algo em torno do meu pescoço, me enforcando. A falta de
oxigênio queimava e parecia que meus olhos saltariam das órbitas. Passando
desesperadamente as mãos pelo pescoço, descobri que o instrumento da minha
tortura era um cordão feito de contas, pedras: um terço! O horror dessa
descoberta me deu ânimo para desprender um golpe com o cotovelo, seco nas
genitálias atrofiadas do sacrossanto. Seu aperto fraquejou e continuei
golpeando até que o homem se afastasse de mim na tentativa de se proteger. Nada
que minhas mãos já acostumadas com o peso da ferramenta de matar não
frustrassem com eficácia. Com um vigoroso balanço dos membros superiores,
acertei o pescoço inchado do padre. Sua cabeça ainda se ligava ao resto do
corpo por uma fina camada de músculo e pele latejante. Misericordioso, o
decapitei.
Neymar
agonizava no chão. Debatia-se e agarrava a perna que vazava continuamente o
suco vermelho. Mais uma vez levando o machado lá atrás e descendo com impulso,
acertei o rosto do rapaz que, no último instante, me encarou estupidamente.
Mais ossos quebrados, mais fluido escapando do saco de carne.
Levantei rapidamente para poder enfrentar Sam. Ardiloso e
covarde, como era de se esperar, ele apontava para mim uma submetralhadora que
aparentava ser de altíssima tecnologia. Cuspiu um chiclete que vinha mascando
para o lado e soltou a trava de segurança. Pressionou fortemente o sensível
gatilho e foi uma chuva de balas para todos os lados. As pessoas que não tinham
fugido da cena de carnificina inicial eram poucas e só uma mulher foi atingida.
Havia vidro se quebrando em todos os cantos, móveis cedendo e paredes
perfuradas. Mas tudo o que eu conseguia ver era a cabeça que balançava com o
solavanco da arma: um rosto que exalava prepotência, fome e imbecilidade.
Caminhei na sua direção. De alguma forma, era como se os
projéteis numerosos não fossem capazes de me atingir. Sua expressão mudara intensamente,
da confiança para o medo. Ergui o machado e arrebentei os músculos do seu
bíceps direito. E então o esquerdo. A metralhadora caiu violentamente no chão,
fumegante, mas inerte. Olhei profundamente nos seus olhos e ele começou a rir como
louco. Decadente.
Eugênio assomou na porta de entrada. Levou alguns
instantes para compreender toda a cena e me encarou. Porém seus olhos não perguntavam nada. Sua vista desceu do meu
rosto para o machado em minhas mãos. Por um instante, pensei que ele fosse me
repreender. Mas o que aconteceu foi o oposto. Eugênio estendeu a mão direita, a
esquerda pôs atrás das costas e então se curvou numa reverência um tanto
caricata. Era como se dissesse ‘te sente em casa, deita a mão no ferro’.
E foi o que fiz. Desferi machadada atrás de machadada.
Até que todo pedaço de pano preso àquele corpo se tornasse vermelho, ou então
um tom negro próximo. Senti-me fraco, tonto, minha pressão baixa. Caí. Minha
visão começou a escurecer, mas me esforcei para manter o foco.
Pessoas
se aproximaram de mim. Pra que tanta
perna, meu deus? Eugênio ainda me olhava de longe enquanto os outros quatro
se amontoavam em torno do meu corpo derramado no chão. Eles soavam tão
preocupados. Olhavam desolados para mim. Algo devia estar parecendo muito errado.
Ergui a cabeça sobre o peito e vi. Meu tronco estava em frangalhos de tanta
bala. Bastou que o cérebro tomasse nota através da visão para a dor tomar conta
de mim. Meus pulmões se encolheram, meu coração hesitou. Não senti mais meus
membros, só as pontadas lancinantes no peito e no abdômen. Tudo então passou
diante meus olhos: a guerra, a fome, a mentira, a ignorância, a crueldade, a
ilusão... Algumas coisas, realmente, eram mais suportáveis se ignoradas. Mas
também fui assolado por algo bem mais bonito, mais reconfortante e, de algum
jeito, nutritivo: a compreensão. Arregalei os olhos e pude distinguir os
contornos do corpo de Eugênio ao longe. Eu
não devia te dizer, mas essa lua... Levantei um pouco a cabeça e consegui gritar antes que sucumbisse, com força e
conhecimento estranhos para a minha situação.
“CAREFUL WITH THAT AXE, EUGENE!”.
uuul muito bom! não vejo a hora de fazer outro!
ResponderExcluirEu gostei desta primeira edição! (:
ResponderExcluirTerminou com gostinho de "to be continued".
ResponderExcluirAchei uma foto do Eugênio: http://t2.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcQ3wxo1CuGnYsy7hFVFmOzZSBImNMwSiwb1QKnJn6BDiEHqq_Wn
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