Par(t)indo


Era fim de outubro e chovia uma intermitente chuva opaca. Ele, sentado num banco frio debaixo de um daqueles pequenos quiosques de praça, contava os minutos de dois em dois. Vestia uma camiseta preta que o deixava com cara de aborrecido, bravo, mas que sabia que ela adorava e as batidas do seu coração pareciam altas a ponto de atrair olhares comovidos de qualquer um que passasse por ali.
            Mais e mais minutos arrastavam os pesados e pontiagudos ponteiros do seu relógio. O tic-tac retumbava como tambores numa casa vazia. Os últimos poucos instantes pareciam maiores do que as últimas semanas, os suspiros mais incontroláveis, o tamborilar na madeira fria mais frenético e a garganta mais seca. Olhou para um lado e depois para o outro, mas nada ainda.
            A chuva vinha num filete, desde o início da rua até passar bem perto dos seus pés. - Saudade é o nome que se dá à loucura de se sentir incompleto. Assim como a água que, por mais que tentasse, não podia mergulhar na terra sedenta debaixo do asfalto duro e impenetrável. Incompleta. Tanto quanto a sugestiva placa de pare com o “E” descascado ou o homem impaciente de camiseta preta e garganta apertada.
Saudade. Ele pensava sobre a saudade de uma vida e uma vida de saudade. Sobre o desespero de guardar, mudo, uma vontade de um milhão de anos de chorar como um bebê, de chorar as lágrimas sozinhas que sempre escorreram por dentro e desceram queimando e secando tudo pelo caminho escuro até o coração.
Ainda era outubro, por mais que visse aquela depressão de fim de carnaval nos olhos dos outros, que eram como espelhos para os seus próprios. Mas só até encontrar um par de olhos mais seu do que qualquer outro dobrando a esquina debaixo de um guarda-chuva negro enlutado.
Os trinta segundos que separaram aquelas duas figuras não foram nada perto de tantos anos de distância. Ele ficou imóvel, emudecido e sem ar e ela, mais natural do que em qualquer sonho. Um abraço parecia impensável. Ele não pôde mover um único músculo, mas ela pousou a mão fria sobre o rosto congelado daquele que, agora, mais parecia um menino.
Ela disse olá e também disse que sentiu falta, como ele esperava. O garoto respondeu sem nada dizer, mas tinha certeza que ela podia saber o que se passava dentro da sua cabeça. Era tudo como ele previu, até as teimosas gotas de água sopradas pelo bafo do acaso.
Sentaram-se no banco que agora deixava de ser frio, mas nem por isso quente. Ela pegou a mão pesada do rapaz e colocou-a no coração, devorado por dentro. Disse eu te amo e disse que tudo acabaria bem como devia ter começado. Mas ele agora era um bebê e ela o pegou no colo. Fez um carinho nos poucos cabelos e beijou a testa crispada.
O encaixe era perfeito: a criança nos braços da mulher. Como Jesus e outros tantos no embalo das suas devidas Marias. Era tão perfeito que chegava a não ser, tão bonito que era impossível. O bebê sentiu a frieza das mãos inertes na sua pele nua e chorou. Chorou por caminhos claros que saíam do coração jorrando em berros.
Era tudo de novo como tinha de ser a partir do momento em que deixou de ser. Mas ao menos o homem de preto sentado no banco frio chorou e num pedaço de papel branco a água mergulhou e ficou.
Saudade é o nome que a morte chama desesperadamente quando a chuva cai.

6 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. eu gostei muito desse post, marquinho haha : )
    você sempre escreve as coisas mais bonitas que eu leio.
    mas eu, particularmente, acho que você fica bem mais bonito vestindo branco : )

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  3. Mto bom...

    Acho que foi depois disso que o Homem de Preto decidiu ser malzão e, graças a isso, conhecemos a célebre frase: "o Homem de Preto ia pelo deserto e o Pistoleiro ia atrás"

    (quase semi-piada sobre A Torre Negra, se você não entendeu é porque não leu)

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  4. Olá. Você me convidou para vir e vim.
    Gostei muito do texto. Queria lhe dar uma sugestão, a de colocar o autor. Assim a gente fica mais à vontade para comentar.
    O texto é seu ?
    Percebo quase perfeitamente o que este homem sentiu.
    Abraço, Vera.

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  5. Odiamos plágio
    Todos textos exibidos nesse blog são de nossa própria autoria, por isso é normal achar erros de português em nossos textos (tirando os textos do Marco lololololol).
    Tirando as postagens de domingo que geralmente não são de nossa própria autoria mais é explicito isso, e sempre são devidamente creditados as honras e glórias ao autor.

    Obrigado pela vizita.

    Recomende para os amigos, nem que seja só pra sacanear... rsrsrsrs

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  6. Muito obrigado, Vera.
    Vou passar a assinar. Volte sempre.

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