Lá eu estava, no banheiro. Despi-me. Agora, nu em
pelo, ligo o chuveiro e faço cair água. Espero alguns instantes para que a água
se torne confortavelmente quente. Uma barata aparece. Ainda estando fora do
chuveiro, saco minha chinela e acerto-a. Ainda com a chinela, afasto-a para o
canto do box. Começo o processo de higiene pessoal: Sabonete na bucha, que é vegetal;
esfrego primeiro a parte de cima do corpo. Não faria sentido começar por baixo,
uma vez que a espuma maculada da parte de cima do corpo cairia sobre a de
baixo, que já havia sido limpa. Por fim, pego o sabonete, esfrego-o nas mãos,
passo nas áxilas e virilha, lavo também meu estimado órgão sexual. Sempre tive
medo desenvolver câncer peniano, a prevenção é uma higiene bem feita; pelo
menos foi o que disse um cancerologista famoso na tevê. Penúltimo ato: esfrego
novamente o sabonete nas mãos e passo-as no rosto; merda, caiu espuma no meu
olho direito. Enxaguo-o desesperadamente.
Ao abrir meus olhos percebo que a barata ainda estava
viva, mas só uma de suas patas mexia, e por Deus, como mexia. Parecia um
pequeno barco que só era remado de um dos lados, ela girava em círculos de
maneira tão desesperada que parecia estar sendo atormentada por algum fantasma,
mas basta se por na situação do pobre inseto para entender que se fosse você,
ou eu, não seria diferente. Faço uma concha com as mãos e jogo um pouco de água
sobre ela, ela desespera-se ainda mais. Faço uma ligação com outros insetos que
são frequentemente torturados dessa forma: formigas presas em copos, vagalumes
presos em latas, besouros em caixas de fósforos, centopeias cutucadas com
varetas e vários outros. E volto à barata. Certa vez uma mulher foi quase um
cristo moderno por ter agredido um cachorro, fiquei tocado por uma fração de
segundos ao perceber que ninguém jamais intercederia por aquela pobre barata.
Pego o xampu, passo uma quantidade conveniente ao meu
curto cabelo, massageio o couro cabeludo com aquela solução de fragrância
eucaliptosa. Repito o processo.
Que fez a barata para que ninguém intercedesse por
ela? Os cachorros mordem pessoas e transmitem raiva e outras doenças, mesmo um
cachorro de rua cheiro de lepras não é tratado como nesse momento trato eu essa
barata. A humanização só é concedida a um pequeno e seleto grupo de animais. Penso
que talvez o sentido da audição seja um dos culpados pelo fato, pois talvez um
dos fatores mais determinantes para a relação canino-humana, embora não seja o
único, seja o fato do cachorro responder a estímulos com latidos, assim como a
maioria dos animais que têm uma relação de afeto com o homem. Nunca vi pessoas
se sensibilizarem com peixes da forma que sensibilizam com cães ou gatos, nem
com baratas.
A pobre barata já teve sua cota de sofrimento, ela
expira com uma última chinelada que desfiro sobre ela. O que me remete a outro
fato curioso, a inversão dos medos. A barata não tem razão alguma para temer a
radiação, ela viveria perfeitamente bem se a terceira guerra mundial,
considerando que nela fossem usados artefatos nucleares, começasse hoje. Ela
viveria bem mesmo que artefatos nucleares não fossem usados.
Foi-me dito certa vez que Deus punia aqueles que
maltratavam os animais. É curioso como o ser humano não tem nenhum remorso em
matar as baratas e formigas e cupins e lacraias, e se o exemplo dos insetos lhe
parece defasado e/ou inutilizado, pense nas pobres ratazanas, que têm a vida
ceifada, muitas vezes, por um pedaço de comida envenenada. Não seriam elas
filhas de Deus também? Que privilégio hierárquico teriam os cães e gatos sobre
os insetos e outros seres tidos como pragas?
Feita uma análise fria, percebe-se que ao pegar um rato
ou um gato abandonado na rua, as chances de se pegar uma doença são as mesmas,
mas ninguém pensa em socorrer o miserável rato, mas morrer de amores e cuidados
pelo pobre bichano abandonado na sarjeta.
Penso que talvez os movimentos furtivos dos ratos e
baratas façam com que as pessoas os vejam mal, pois estão sempre surpreendendo
e assustando; sempre aparecendo e sumindo como vultos.
Saio do chuveiro. Há muito vapor no banheiro. Esfrego
a toalha no vidro de frente a pia. Percebo que há uma rala barba por fazer.
Passo espuma e pego a lâmina, começo o processo. Corto-me, só então percebo que
a lâmina não é a minha, mas sim a do meu primo, que passava férias em minha
casa por um tempo.
O que eu só fui saber semanas depois, é que ele tinha
AIDS.
AIDS! Ou você tem, ou você pega (y)
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