Carta aos bigodes mui pretos em cima de sorrisos mui extraterrestres



Caro senhor vaqueiro,

Como tem estado? Passei os últimos dias com lembranças teimosas na cabeça. Daquelas lembranças sensoriais demais, que têm cheiros, sons e comichões espalhadas pelo corpo; elas vêm, se vão, voltam, somem, dão lugar a outras, gritam e eu me rendo. Mas espero que tenha estado bem.
Suas botinas duras, repletas de barro e impiedosamente surradas estão aqui. Assim como as cabaças amigas e velhas e os chapéus, bonés e toucas que se puseram por longos anos a mistificar sua careca vistosa, mas nem um pouco grisalha. Tudo isso está aqui e tudo me traz à mente imagens de um campo vasto, de animais robustos, ventania calmíssima, céu limpinho e canto de curiós.
Eu sinto falta, sinto muita falta de como era antes, de poder correr até o senhor atrás de conforto ou simplesmente calor. Falando nisso, nunca senti tanto frio, acho que não sou só eu, mas só posso falar por mim. Entende? Claro que entende.
Mas um belo instrumento é o acordeom, não é? Sanfona, como a gente costuma chamar por aqui. Pena que o tempo trouxe fadigas pra ti, e trouxe pra mim, dessa maneira. Tenho vontade de aprender a tocá-lo, como se fosse um jeito de estar mais perto. Mas você, cansado e decidido, já me ensinaste a afinar a meia dúzia de cordas de um velho violão; basta, pra mim, que eu carregue isso como um legado, uma herança, um orgulho indizível.
Outro dia descobri que não é possível encontrar outra pessoa como você. Sempre soube, mas a cada dia que passa, um pedaço maior de certeza me acerta na cara. Por que é que me permitiram estar tão curto tempo ao seu lado? Vai saber...
É sorte desse tal deus eu não acreditar muito nele. Porque, se eu acreditasse, ah, ele se veria comigo. Tanta gente ruim por aí, tanta lesma e erva daninha no jardim celeste, e ele fica se ocupando em dar doença para gente bacana e de valor como você? E depois ele vem me falar de pecado e que coisas ruins, só com O coisa ruim. Acho que isso não passa de crise de identidade: ele é O coisa ruim. Tudo bem, tudo bem, eu não acredito nele, mas não tinha ninguém mais pra xingar...
Quero te contar dos meus dias, das minhas descobertas, dos meus medos e daquelas tantas coisas que ficaram pra sempre aqui, entaladas, quando foi embora. Quero ouvir o que tem pra dizer, sempre, pois sempre foram as palavras mais sábias que pude ouvir. Quando será que te vejo de novo? Deve demorar, isso se algum dia calhar que aconteça.
Só que, por mais que isso me incomode, quer dizer, estar longe assim incomode, eu não sou egoísta o bastante para querer atrapalhar o seu descanso. Afinal, nenhum de nós pediu para vir a este mundo, simplesmente aconteceu. E ele é tão ruim, tão feio e sujo em certos lugares, que, às vezes, a gente deseja que não tivesse vindo. Mas isso é uma grande besteira, eu sei e você também sabe que querer nunca ter vindo é besteira. Se essa é a nossa única chance de fazer coisas boas ou de só fazer parte de coisas boas, já basta, já vale toda uma cesta de coisas ruins, feias e sujas.
E por isso fico tranquilo. Porque você fez a sua cota de coisas boas e até as cotas de outras pessoas. Então agora, que chegou ao fim sua existência consciente, pode ir, com toda a paz do mundo, espalhar cada célula, cada átomo do seu outrora bem composto corpo pela terra.
Porque eu ainda te sinto aqui, sabe, e não deve ter nada forte o suficiente pra me fazer deixar de sentir. Porque todas as vezes que eu pensar em bigodes bem pretos cuidados em cima de um sorriso tão bonito como este seu, vou ter certeza que eles são de outro mundo e que vou senti-los até que a minha vez de me espalhar por aí chegue. Porque, senhor vaqueiro, a vida é muito curta e talvez eu nem tenha muito tempo sobrando da minha, mas pode ficar sabendo que não vou parar de escrever pra você.

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