Eu era bem mais menino – podia até dizer mais novo, mas
menino carrega um ar de pureza intocada, de inconsciente vontade de viver –
quando me dei conta de que não queria mais ser jogador de futebol, cosmonauta
ou corretor de imóveis: era a primeira sementinha da desilusão brotando. Foi
mais ou menos nessa época que li um conto do Mário de Andrade e pensei que
fosse sobre dois garotos gays simplesmente. Hoje, relendo o conto, eu sei bem
que não é só isso, as coisas vão muito além do que um menino julga ver, onde eu
via apenas uma desconcertante aproximação homossexual, vejo a dor de ter que
repelir os seus próprios sentimentos para evitar que os meninos, os outros,
julguem ver; vejo a maior vergonha de todas, que é a de sentir-se errado,
terrivelmente errado. Porque esse é o verdadeiro problema da ignorância, dar
valor demais a coisas que não mereciam nenhum, importar-se demais com os
outros, esquecendo, dessa forma, que o outro também é você, e que se você se
importa demais com as coisas de um outro ainda, se vê obrigado a cuidar para
tornar-se aquilo que exige, e isso não finda, é o moto-perpétuo da ignorância,
e ela fica por aí à espreita, esperando para ser posta como antônima da
inteligência, quando, na verdade, nem isso merecia. Mário de Andrade foi modernista,
mas isso não interessa, Frederico Paciência que o diga, o que interessa é que
eu também morro de vontade de levantar a minha camisolinha e mostrar as minhas
vergonhas para a santa, mas não sou moderno, os meus distúrbios são os mesmos
desde os remotos tempos em que o meu rosto era liso, o tempo do rosto liso. E
isso também me faz lembrar daquela velha história, sempre presente nos mais
baratos discursos otimistas e motivacionais, que diz “você deve mirar a lua e,
se errar, ao menos acertará uma estrela”; podemos até levar em conta que o
autor dessa ilustre máxima não era muito conhecedor da mais simples astronomia,
ou talvez até seja muito antigo para poder ter conhecimento do tal ramo da ciência que trata da constituição, da
posição relativa e dos movimentos dos astros; porque, convenhamos, a
construção da frase nos faz pensar que é mais fácil acertar estrelas do que a
lua, quem dera fosse assim com o resto das coisas, que pudéssemos dizer “tente
viver, quem sabe até morra”. Mas e o tempo do rosto liso, ah, esse era o tempo
em que eu acreditava que a lua era maior que as estrelas pelo simples fato de
ela parecer maior.
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