Pós-Zumbis 3ª temporada (8)


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Morosidade

                   E amanhece. Camaleão mal havia dormido, R. tão pouco, rogava a qualquer entidade ou causalidade universal que dissesse-lhe onde estava Monquei; Linda dormiu bem, mas pouco; Albinati passou a noite revezando entre lágrimas e lamúrias. Fronrel dormia como se a rotação terrestre dependesse da atividade.
                                      Todos tinham fome, mas bastava uma olhadela pela janela para descartar a ideia de ir atrás de comida. Era cedo, horário em que as ruas se transformavam em diques estourados que jorravam gente. A quantidade de zumbis era assustadora. Assim como os auto-falantes anunciando as extremas vantagens sexuais de se comprar o desodorante x, a maquiagem y... Linda olhava aquela cena da janela empoeirada e de madeira apodrecida e sentia um ódio mortal; havia depositado fé em Fronrel, havia abandonado uma grande oportunidade de entregá-los às autoridades para seguir as frivolidades daquela mente tão surrealmente cativante; havia renunciado a tudo isso para ver um deles morrer explodido, um desaparecer, duas garotas ficarem histéricas, um tentar reanimar a todos e Fronrel despirocar em um louco que acha que leite jorra de pedra. O que a freava de ir embora? Se ela colocasse a ideia à prática nenhum deles impedi-la-ia, então o que ela estava fazendo ali? Conjecturava, ora pensava em abandonar o barco e se virar sozinha, mas então olhava para Fronrel e pensava que não podia abandoná-lo assim, depois sentia um ódio mortal de si por ter se apegado àquele grupo. E assim ficaram. À hora do almoço R. finalmente diz o que todos sentiam, diz que tinha fome. Linda diz que o melhor é esperar anoitecer, todos consentem, embora os estômagos pareçam ter ressalvas quanto ao comum acordo.
                Ocasionalmente um carro de polícia passa. Nossos protagonistas tomam cuidado nesses instantes para não serem vistos. Ouvem também alguns alertas sobre pessoas extremamente perigosas que escaparam da cadeia, era um alerta sobre eles; o alerta dizia que eram terroristas, terroristas subversivos, uma ameaça à sociedade e que, se vistos, deviam imediatamente ser denunciados às autoridades competentes.
                Cai a noite.
                _ Ok… e quem de nós ira atrás de comida? – pergunta Camaleão.
                _ Eu vou. – diz Linda.
                _ Sozinha?
                _ Sozinha.
                E Linda foi. Ao cair da noite o bairro em que se encontravam era bem tranquilo. Não era como os bairros luxuosos onde as famílias abastadas moravam, onde se fazia festa dia e noite mas ninguém era feliz. Se bem que, naqueles dias, felicidade real era cada vez mais rara. Era dia de semana, o que tornava ainda mais mister a calmaria.
                Havia um pequeno mercado local a três quadras do bloco habitacional onde se encontravam. A verdade é que Linda ainda ponderava sobre como proceder, se aproveitando a oportunidade para desaparecer sem dar adeus e deixar todos pensando que o pior aconteceu, pois dificilmente diriam que ela abandonou o barco, ou então ir, se arriscar pegando a ração, que foi justamente como toda essa sucessão de desventuras começou, e torcer para que dê certo. Relutando, optou pela segunda opção; e havia uma grande chance de, para os que ficaram no apartamento, ela ter o mesmo efeito da primeira, pois, com os olhos atentos da capital, havia uma grande chance dela ser pega e acabar “acontecendo o pior” literalmente.
                Andou. Os postes iluminavam a rua de forma intermitente, o que ajudava a compor um quadro meio sombrio, que fazia eriçar os cabelos das costas. Ela segue impávida, apenas com uma pistola que pegou na base de segurança de onde haviam milagrosamente escapado.
***
Enquanto isso, no apartamento, todos estavam apreensivos desde que a porta se fechou entremeando as costas de Linda e o Living Room. O silêncio passou a reinar. R. tinha vontade de gritar, de desabafar até os pulmões doerem, achava aquela situação uma piada na qual a única descontente era ela, ela queria ação, queria que batessem na mesa e dissessem “vamos atrás do Monquei, vamos achá-lo”, queria que alguém se dispusesse, mesmo ela sabendo ser isso impossível; queria que alguém ao menos cogitasse a hipótese, mas não, ninguém dizia nada, todos estavam apáticos, todos estavam descontentes.
Fronrel começa a murmurar. Todos o olham aflitos, não queriam contemplar aquele espetáculo triste novamente, aquela cena deplorável, aquele apelo interminável somente comparado ao seu monumental fracasso em fazer sentido. Mas dessa vez ele nem se levantou, apenas abriu os olhos e começou a dizer, baixinho: “não é culpa deles, é como nascer com o cabelo ruim, você não escolhe, não é culpa deles...” e continuou nisso por dez minutos, quando então voltou a ficar calado.
***
                Linda chega ao mercado. Para no estacionamento e analisa o local, estava lotado. Então ela tem a idéia ao ver um cliente descarregando as compras do carrinho de compras no seu carro. Em vez de roubar a loja e correr o risco de se envolver em uma epopéia problemática de sair, ela iria roubar um carro que estivesse abarrotado de comida e pronto, teriam um considerável estoque. Chega perto de um carro família, desses com bastante espaço no porta-malas. O dono está desatento, provavelmente olhando para algo na própria roupa. Ela chega sorrateiramente, como o gato que espreita o passarinho novo e vê nele o novo jantar. Como iria lidar com aquele zumbi? Essa era a pergunta. Bem, o estacionamento estava consideravelmente vazio.
                “Vou quebrar o pescoço dele e torcer pra ninguém notar.”
                E foi assim. Não demorou mais que quatro segundos. Ela chegou, posicionou as mãos envolta da cabeça e queixo e, antes que ele pudesse perceber o que se passava, já havia morrido.
                É engraçada a história desse zumbi. Ele não olhava “algo na própria camisa.” Olhava um SMS da sua esposa xingando-o. Humilhando-o por ser tão imprestável, por ter transformado a vida dela em um Inferno, por ser um charlatão, tê-la enganado com a premissa de ser o homem da vida dela, por ser um porco que ultimamente nem prazer na cama lhe dava.
                Essa queda livre começou justamente quando ele estava para refutar uma proposta de emprego que envolvia alto comprometimento e grande renda salarial. Na época, com o salário que ele passaria a ganhar, eles poderiam comprar o tão adorado carro dos sonhos (que era justamente o que Linda levava nesse momento), e também uma temporada no Spa, que há tempo a esposa vinha lhe suplicando. Enfim, sob influência da esposa ele aceita o encargo. Após certo tempo a mulher redecora a casa, troca o jardim, compra novas roupas... Mas o marido já não passa tanto tempo em casa, e o serviço lhe é extremamente fatigante, deprimente, mas ele pensa que a mulher está feliz, está contente, afinal agora tem tudo que a vida pode oferecer. O sexo diminui, os momentos juntos diminuem; ela arruma um amante. Ele ainda não sabe, mas simultaneamente entra em depressão. As brigas começam. As acusações de “não apoio”, os dizeres de “não compreensão”, os colóquios grosseiros sobre “a culpa ser sua”. E por ai começa a ruir o casamento. Com o dinheiro que eles haviam juntado, se ele saísse agora dessa rotina, poderiam viver a vida com regalias e prazeres e ainda teriam um dinheiro para deixar aos eventuais herdeiros, mas a gana era maior, a necessidade de ver os zeros aumentando na conta bancária era um Karma, um vício, um fardo do qual nenhum dos dois conseguia se livrar, mesmo sabendo, cada um sem dizer ao outro, que era justamente essa rotina o problema. Bem, Linda deu um fim a tudo isso.
                Alguém tardiamente grita assalto e corre ao corpo caído no chão, mas já era tarde, o carro já estava longe.
                Linda chega ao apartamento. Anuncia os espolhos da cruzada e diz para todos correrem, porém sem alardes, e retirarem rapidamente as compras de dentro do carro, pois ela tinha de dar fim ao veículo o mais rápido possível.
                Linda requisita o auxílio de camaleão para dar fim ao automóvel. Uma vez que ela vai jogá-lo bem longe e precisa de alguém para trazê-la de volta. R. e Albinati concordam que há certo risco em ficarem sozinhas no apartamento, ainda mais com a presença imprevisível do Fronrel, mas Camaleão assegura-as de que será breve.
                Saem. Linda no carro furtado, Camaleão no que pegaram do velho na entrada da cidade. Lilia guia a viagem. Seguem à região central de Brasília. É madrugada. Param de frente ao Lago Paranoá. Linda acelera bastante o carro, solta a embreagem, o carro arranca, ela salta com ele em movimento, ele cai na água e afunda lentamente. Ninguém os viu. Rapidamente, Linda entra no carro em que estava Camaleão e voltam ao apartamento.
                Fronrel estava finalmente de pé. Olhava fixamente pela janela, e por mais que se esforçassem, Albinati e R. não conseguiam tirá-lo de lá. A cada intenção ele reprimia-as com um “Shhhh” corroborado pelo dedo indicador posicionado frente aos lábios. O olhar de Fronrel poderia ser definido como a transposição da Tristeza. Vertiam de seus olhos, ocasionalmente, uma ou duas sofridas lágrimas, daquelas que custam a descer pelas maçãs do rosto.
                _ Agora a rua está vazia. Amanhã aqui vão estar eles de novo. Coitados. Eles não têm culpa sabe. Eles... eles... – nesse momento ele comprimia a cabeça com as mãos. – eles... sofrem. É como uma maldição sabe, uma maldição, que nem essas das bruxas, essas que as macumbeiras fazem, só que essas funcionam, e sem galo preto nem nada. E nessa maldição eles vivem, passam a vida, passam a vida... a v-i-d-a...
                Então Fronrel simplesmente cai.
***
                E assim foi, com a comida que tinham passaram exatos dezenove dias e um pacote de bolachas no vigésimo. Não armaram planos, não traçaram estratégias, não fizeram nada, apenas comeram e lamentaram o ponto em que então pararam. Do Monquei nem notícia, só lembranças e Esperanças. Fronrel continuava na mesma, entremeando entre momentos de fixa atenção no vazio com uma baba escorrendo-lhe pelo canto da boca, momentos de um solilóquio incoerente e sonecas extremamente compridas. Linda estava praticamente decidida a abandonar o barco. R. parecia ter perdido o brio da vida. Albinati limitava-se a chorar encolhida em algumas noites e tentar algum diálogo com Fronrel, sem nenhum sucesso. Camaleão via toda a cena com uma tristeza sem expectativas.
                Mas mesmo os desiludidos têm fome, e não era diferente com nossos heróis. Porém, mesmo desiludidos, nossos heróis ainda pareciam agraciados, pois o tédio não lhes havia proporcionado o afago. No mesmo dia em que findou-se a última bolacha do pacote, alguém bate à porta dos nossos protagonistas.
                Linda olha pelo olho-mágico, eram zumbis, e eram muitos. Parecia ser uma família bem grande, ou uma espécie de grupo. Será que pretendiam tomar o apartamento? Linda arrisca:
                _ Está ocupado!
                Os zumbis entreolham-se. Nenhum deles profere uma única palavra, mas por debaixo da porta escorre um papel. Um papel que parecia ser a planta do conjunto habitacional em que residiam. Nele haviam quadros negros e brancos e uma legenda que dizia serem os quadros negros os apartamentos habitados e os brancos os vagos. Sendo a estada dos nossos heróis fruto de uma invasão, não era de se esperar que estivesse o quadro referente ao apartamento em questão pintado. Silêncios. Os zumbis agitam-se. Quando então começam a gritar, a gritar e fazer arruaça. Em pouco tempo o corredor está tomado, os residentes pareciam instantaneamente terem tomado as dores da causa da família/grupo de zumbis. A porta começa a tremer, os solavancos do outro lado eram moderadamente fracos, porém periódicos. A porta não resistiria muito.
                Estavam no primeiro andar.
                _ Teremos que sair pela janela, e rápido! – diz Camaleão.
                Todos se direcionam para a janela, então, ao fazer as contas, olham para trás e veem Fronrel, sentado e quieto, sereno como a manhã de Natal. Ninguém diz, mas, por um instante, todos ponderam a hipótese de largá-lo ali, não era mais Fronrel, era apenas uma casca, um retrato, Fronrel havia morrido. Mas eis que ocorre algo, Fronrel parecia ter percebido os olhares suplicantes que penetravam-no.
                _ Ok, Ok. – diz Fronrel, impaciente. – em vou.
                Então ele levanta-se e marcha rumo à janela. Descem um a um, inclusive Fronrel. Os zumbis conseguem invadir o apartamento. Ao perceberem que não há ninguém ali, vão até a janela. De lá amaldiçoam e ameaçam nossos protagonistas com mistos incompreensíveis de passagens religiosas, leis constitucionais e linguajar de baixo calão.
                Nossos protagonistas entram no carro. Saem.

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