Ele falava. Falava sem parar.
Não que isso fosse ruim...
_ Não cara, pra você ver como são as coisas... A
mulher tinha 35 anos, 20 anos de Aidética e não tinha morrido até então; era
viciada em crack a uns 3...ou...2 anos, não sei ao certo, mas o que interessa é
isso: Ela estava viva, mesmo viciada, mesmo doente, daí sofre um acidente de
carro, feiozíssimo, e o que é que acontece? ELA SOBREVIVE! SO-BRE-VI-VE! Dá pra
acreditar? Mas não acabou cara, não não, ela quebrou as duas clavículas e, em
função disso, teve de engessar os ombros... só que teve de engessá-los curvados
para frente. Daí, os movimentos dos braços da mulher ficaram limitados e, para
não ter de ficar se movendo demais, ela não largava o cachimbo de crack, fumava
a pedra inteira de uma vez... você sabe como são os viciados... Cara, ela
morreu de overdose, com o cachimbo na mão, EM UMA SE-MA-NA. Dá pra acreditar?
Viciada, Doente, acidentada e não morreu... e a porra de um cachimbo matou-a.
_ Quem acreditaria, não? – Disse eu, forçando ao
máximo o tom de ironia. Mas é inútil, mas até que não é tão ruim assim.
A
conversa mantém minha mente distraída, tenho de me distrair para estar frio
quando chegarmos. Ah! Esqueci de dizer, estamos dentro de um carro: opala,
motor de seis cilindros, branco, rodas de faixa branca. No rádio toca baixinho
uma música do Raul, o grande Raul Seixas... “Paranóia”, esse é o nome pelo qual
a música atende. Grande música, letra como só Raul saberia escrever.
_ Não,
agora escuta essa... – Ele estava empolgadíssimo com a conversa – Um cara que
trabalhava em uma obra como pedreiro que me contou eles estava construindo uma
casa daí ela era irregular e vieram uns caras e...
_Hey,
vai com calma, pontue seus comentários, por obséquio.
_Bem, é
o seguinte, Ele trampava em uma obra, saca? Então, era em um desses “bairros
governamentais” que o governo constrói e ganha votos... Então, daí, ele estava
trabalhando na construção de uma das casas lá... daí chegaram uns fiscais, os
caras entraram, não falaram nada, começaram a vasculhar e olhar a obra sem
tocar um único dedo. Consegue imaginar a tensão dentre os que trampavam lá? De
repente um deles acena com a cabeça para o outro, daí esse outro caminha em
direção à porta e pára no meio do caminho, então ele assobia... De repente
entra um exercito, cara, um gigantesco grupo que mal cabia dentro do lote.
Então o que assobiou disse “tira tudo que der pra tirar, a gente vai por a obra
abaixo”, daí o exercito que entrou no lote começou a se espremer em si próprio
para abrir um corredor, daí entra um trator enorme e derruba, em menos de cinco
minutos, a casa inteira. EM MEIA HORA eles derrubaram um trabalho de quase três
meses, mais de cem casa... Consegue acreditar nesse tipo de coisa?
_ É...
pra você ver como são as coisas... “A vida é dura” – Remeto a uma fantástica
frase de um livro que li, acho que foi “ O Cheiro do Ralo”, definitivamente
Lourenço Mutarelli, autor do livro, não é um leigo na arte de falar.
_ Mas e
as que já estavam construídas? – pergunto
_ Essas
eles deixaram.
_ O que
me leva a crer que eles incentivam que vive na irregularidade mas sabe encobrir
bem, não é?
_ Deve
ser
Ele
prossegue o solilóquio
_
Cara... a realidade te convence?
_
fffff... Bem... depende... de que ponto de vista?
_ Porra,
a mim ela não convence, parece sempre que vou acordar a qualquer instante.
_É...
colocando nesse ponto de vista... – com essa frase eu pareço concordar com ele,
quando na verdade discordo, embora não completamente.
Tenho um
lampejo, de repente pergunto:
_Cara,
onde é que você arruma essas histórias?
_ Uae,
normalmente as ouço em bares ou padarias, quando não são diretamente contadas a
mim.
_ Vira
ai na próxima esquina.
O Carro
descreve a curva, o motor ronca macio. Paramos em uma distribuidora. Descemos ambos,
compro eu uma garrafa de whisky, o bom e velho Jack Daniel’s, compra ele um
maço de cigarros Red Apple. Ao sair, cumprimentamos a dupla de policiais que
faz vista grossa ali na porta da distribuidora. Eles são gordos, demasiado
gordos para correr atrás de qualquer bandidinho cheirador de cola que passe por
ali, usam máscaras, máscaras que se parecem com a da tragédia do teatro grego,
o curioso é que, a meu ver, ficariam bem mais convincentes com a da comédia. Se
eu usasse máscara, seria a de Guy Fawkes... ou não.
Entro no
carro, abro o whisky, tomo um belo gole, tomo no bico mesmo, estendo a garrafa
a meu nobre amigo, ele aceita, em troca me oferece o maço de cigarros, retruco:
_ Sabe
que eu não fumo.
_ Nunca
é tarde para começar
_ É um
prego que eu não pretendo por no meu caixão.
_ Ok,
cada qual com seu prego.
Ele da
partida no carro. Opala. O Rádio volta a tocar baixinho... Bicho de Sete
Cabeças, Zeca baleiro.
Ele
solta, de forma inusitada, como sempre:
_ Eu
tive um sonho estranho.
_ Mas a
realidade já não é um sonho?
_ Não
cara... esses sonhos mesmo, os que a gente supostamente tem quando dorme.
_
Supostamente? Você acha que são imagens plantadas no seu cérebro?
_Bem...
ah... foda-se... isso não vem ao caso agora, o que interessa é qu’eu tive um
sonho.
_Quem
disse isso foi o Luther King, só que no tempo presente... “Eu tenho um sonho...”
_Vai deixar
eu contar a porra do sonho?
_ Conta
ai.
_ Então,
eu estava em uma sala, essa sala era toda escura... mas tinha uma luz bem
tênue... essa luz me permitia enxergar o quarto parcialmente, tinha uma
camasinha de solteiro e um ar-condicionado ligado, só. E fazia um puta frio. Só
que não tinha porta. Daí apareceu um corpo de aparência humanóide envolto em
uma capa, parecia a morte, mas eu sabia que não era porque estava sem a foice,
você sabe né? A Morte só aparece com a foice. Bem... voltando... a coisa disse “Já
era... você já era”. “Já era’ o caralho” respondi. Então fui em direção a ela e
puxei a capa, era uma loira muito gostosa, daí puxei o vestido que ela usava e
expus seus peitões... Então ela sumiu. Acordei. O que será que significa?
_ Sonhos
não significam nada.
O carro
diminui de velocidade. Um semáforo. Passa uma linda asiática. Meu nobre
parceiro comenta:
_ Uow!
Eu comia.
_ Quem?
A loira do sonho?
_ Não...
a Asiática, quer dizer... a do sonho também. Você acredita em democracia?
_ Só se
significar “Governo do Demo” – Associo
_ É...
deve ser coisa do demônio mesmo... já reparou a farsa?
_ É... é
igual a realidade... não convence. Mas é justamente isso, a democracia está
inserida na realidade, se o contingente não convence, como é que o conteúdo poderia?
_ Falô tudo.
Ele me
pergunta:
_ Eai?
Como é que vão as coisas com a patroa?
Ele
sabia que essa pergunta me irritava
_ Você
me pergunta pra me ver estressado, é isso?
_ Que
isso, só estou preocupado com seu bem estar. E os filhos?
_ Vai se
fuder.
_ QUE
ISSO!
Chegamos
ao local. No rádio toca Stairway to Heaven, do Led Zeppelin. Eu gosto da
música, mas sei que o riff é plagio, nada se cria. Triste.
Descemos
do carro. Opala. Ô – Pára. Pára...Ô. Descem0s. Eu porto um revolver. Ele a cara
de pau. Eu porto whisky, ele porta um maço. Eu porto o cansaço, ele o entusiasmo.
Eu porto a inconsistência, ele as chaves do carro.
Atravessamos
a rua. A chave do carro cai. Eu me agacho, ele rola para frente e grita, eu não
entedo. A luz fere meus olhos, o tempo congela... Por um momento eu visualizo
com uma riquessa de detalhes nunca dantes vista o pára-choque de um gol GTS 97.
Até que ele esmaga minha cabeça. Sou pasta vermelha no asfalto. Fui-me. Fuime.
Fome – Associo.
“N’ She’s buying a stairway to heaven...”
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