O fraterno contorno do cesto


“A diferença entre os homens e os animais é o conhecimento da morte”, assim dizia Voltaire.
“A diferença entre os homens e os animais é a percepção da fome”, assim dizia Quincas Borba, o filósofo machadiano.
“A diferença entre os homens e os animais é a consciência da vida”, assim eu digo, desde ontem.
E é isso, e só isso, que faz do homem algo diferente dos outros seres vivos de organismos tão complexos que pudessem ser levados em conta na comparação. O homem sabe que vive, sabe de onde brotou, sabe que tem fome e que terá fome, sabe que vai morrer e lembra-se disso a cada instante. Mas ter algo a mais - as peculiaridades do conhecimento, da percepção e da consciência - não faz de nós a quimera mais bem elaborada e bem sucedida de todos os séculos da natureza; falando-se abertamente a verdade: essa é a causa da nossa existência miserável.
Nós temos a capacidade de olhar para frente, considerar possíveis cenários futuros. E, responda mental e sinceramente a essa pergunta, o que você vê quando olha para frente é um deleite para os olhos? Sabemos que vivemos e temos praticamente a certeza de como viveremos; a mesma vida que milhões de outros viveram antes de nós é o que teremos a frente, o eterno retorno de Nietzsche bem aí, debaixo dos nossos narizes.
            E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!". Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: "Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?".
            Nós temos a consciência de que vivemos e isso nos arrasta a uma morte penosa e quase letárgica. Imagina se vivêssemos num eterno retorno ao mesmo?

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