Talvez avestruzes, talvez para ver


Você consegue, amigo leitor, você consegue encarar os olhos de alguém? Você consegue olhar bem lá no fundo, sem nenhum embuste, sem sorrisinhos quebradores de tensão, sem pálpebras que piscam tentando fugir, sem meias palavras, sem desvios, só o caminho denso, quilométrico e microscópico entre dois pares de globos que, mesmo reduzidos à metade, fazem rei aquele que por terra de cegos passeia?
            Ultimamente, caminho para pensar que é só isso e nada mais o objetivo homérico e primordial da vida: ter alguém para cujos olhos você pode se entregar como se estes fossem seus. E não só ser capaz de encará-los, mas também desejar que eles te conheçam, que eles compreendam tudo o que há em você, que eles te guardem e te velem.
Só que a receita de ter bons olhos que fitem os seus funciona somente se for como um espelho – reflexiva – e como uma visita ao proctologista – íntima. Ela deve ser um transbordamento de carícias, como diria o poeta. (Ah, como eu queria que as coisas, todas elas, fossem como dizia o poeta; não qualquer poeta, O poeta, o poetinha, ele, sim, sabia de fidelidade de amor e de rosas). E o que mais é necessário?
Eu penso que sim, que tenho um bom par de olhos que me fite, me conheça, me compreenda, me guarde e me vele. Ou pelo menos tente. Mas eu me perco neles, me esqueço de todo o resto quando eles me abraçam: o clima, a fome na África, a situação do sistema prisional brasileiro, o descaso e a ignorância: isso não importa e não vale uma piscadela.
Quero esses olhos nos meus, quero esses olhos em mim, quero-os para fazer como aqueles animais, talvez avestruzes, não sei, que enfiam suas cabeças em buracos quando assustados, quero enfiar os meus olhos nos dela.

               

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