Último ato: Edadeicos X Homem sem nome


Eram meus momentos finais, eu estava ofegante, último ato, como diziam. O Edadeicos aparece, “Hora de representar” penso que ele deve estar pensando. As cortinas se abrem, a platéia tem uma cara profundamente opaca e apática, uma massa cinzenta de dez mil milhões de cabeças que juntas não davam meia. O “ambiente” era abismal, atroz, fétido, cheirava a merda, cheirava a inconsistência, cheirava a tendencioso. Então ele começa a representar. Eu estou cansado e só espero que tudo seja rápido e indolor, não quero mais lutar, não quero mais nada, desisto. Não ouso pedir que seja discreto porque com o Edadeicos nunca é, na verdade real e verídica da situação é até um devaneio sonhar com a possibilidade de uma morte indolor, com o Edadeicos nunca é, não só no sentido da aflição da carne, não, ele vai mais fundo, psicológico, como dizem. Ele começa:
_ Oh! Cara platéia perspicaz e inteligentíssima que inteligentemente se apresenta à frente desta humilde vítima que cá se encontra, sim, vocês sabem que o sou, vocês sabem, sabem que sou vítima. Profundo sofrimento tenho enfrentado, mas eis que a justiça é justa e cá estou com meu mal feitor. Muito mal ele tem me feito, ó, espectadores, muito mal ele tem NOS FEITO. Ele dizia ser bom, MENTIRAS jogadas aos nossos ouvidos, feitas para sermos enganados, claro, eu NUNCA me deixei enganar, por isso sofrí  tanto com suas acusações insolentes e de “perjoratividade” sórdida, de insolência tamanha que me fez ter vontade de retribuí-las, mas eis que aqui estou, DIGNO, VIVO, VERDADEIRO E DE PÉ, de frente a este que impensadamente ME ATACOU, NOS ATACOU.
Era o circo que todo mundo queria ver, um apedrejamento em praça pública tal qual tentaram com Maria Madalena, mas, infelizmente, pra mim não tem Jesus. Devo admitir que a atuação era fenomenal, tamanha sua maestria, ele consegue fazer para mim e para a platéia a mesma cara, mas ao mesmo tempo caras completamente diferentes, antônimas, se lhe apetece a definição gramatical. Eu poderia rebater todas as injustiças a mim lançadas, mas este júri que segue a minha frente não era um júri imparcial, não senhor, nem sequer iria me ouvir. O ambiente estava realmente opressor, era quase como se as paredes estivessem se encolhendo... Ou será que realmente estavam? Poderia ser real, quem ousa duvidar das percepções sensoriais do próprio corpo está atestando a falta de confiança na própria consciência. As cortinas do palco eram extremamente altas, quase a perder de vista, principalmente para mim, que tinha o pescoço, os braços e as pernas imobilizados, a sensação era claustrofóbica. Estava em uma daquelas engenhosas “ferramentas”, se assim se pode chamar, em que se prendiam os criminosos da Idade Média para serem guilhotinados.
_ Tem algo.......... a declarar? – Questionou-me Edadeicos, com sua fronte vitoriosa e altista.
Era óbivo que não tinha, tudo que poderia ser tentado já havia sido, agora era esperar o fim do espetáculo, meu problema foi ter sido otimista demais, eu demorei perceber que não é contingente que muda o conteúdo, mas sim o oposto.
_ Vêem, ó, grandes amigos, VOCÊS, COM SUA PERCEPÇÃO IN-DU-BI-TÁ-VEL, vêem o que eu vejo?
Que idiotas, era visível na cara deles que eles não enxergavam porra nenhuma, mas gostavam da pose, precisavam da pose, muito provavelmente nem estavam entendendo merda alguma do que dizia Edadeicos. Isso me fazia lembrar aquela parábola do Rei que encomenda uma roupa muito bela, mas enganam-lhe falando que a roupa que haviam feito era de um tecido especial, que só poderia ser visto por pessoas esclarecidas. Todo mundo olhava para o Rei nu e dizia em tom burguês “Que belas vestes, ò, alteza” e coisas assim. Bando de idiotas. Agora o mesmo acontece aqui, só que o Rei sabe muito bem a vestimenta que traja... em pensar que eu já lutei por esses malditos. Que maneira inteligente de agir, devo admitir, dar a eles a ideia de que o entendimento vem deles, não o oposto, uma estratégia que qualquer pessoa mais perspicaz percebe. Mas era essa a chave do sucesso, eles eram tudo, menos perspicazes.
E é agora que o grand-finale  começa, o derradeiro êxtase em que a platéia mergulhará antes de voltar para as correntes, amarras e algemas voluntariamente, claro. Supostamente a PERCEPÇÃO IN-DU-BI-TÁ-VEL que eles tinham os levava àquilo. “Vocês percebem, ó, amigos, com sua PERCEPÇÃO IN-DU-BI-TA-VEL as inestimáveis vantagens de se comer merda? Claro que percebem, como não perceberiam algo tão óbvio, não?” E assim eles iam, guiados pela “ percepção indubitável das coisas”, antigamente eu rangia os dentes, hoje eu vejo tudo como uma triste piada, talvez eu não tenha enlouquecido por esperar que isso tudo seja um sonho ruim do qual irei acordar um dia, mas esse tipo de expectativa só vem provar o quão louco eu sou.
A guilhotina é erguida, a platéia se comprime em frente ao palco como se quisesse que meu sangue esguichasse em suas faces. Edadeicos da um sorriso maléfico como o do próprio demônio que talvez eu venha encontrar daqui alguns segundos. A, Edadeicos, seu velho sádico de pernas longuíssimas e finas, as calças pela canela, uma enorme barriga que todos juravam ter o dom da fala, a cabeça branca que ostentava uma cartola colorida e os braços como gravetos. Edadeicos, eu sou um aborto dele, eu sou mais triste que ele, pois ele tem a mim e eu vou morrer sem ter conseguido viver nele. “Triste o caralho, penso eu. Se for pra escolher entre conviver com essa merda ou morrer eu quero é meu asilo no inferno.”
A guilhotina é puxada. Um segundo de expectativa, minha cabeça rola no chão, a platéia invade o palco, ao fundo as risadas loucas de Edadeicos preenchem a cena com um toque dantesco. Meu último pedaço antes de ser engolido ainda pensou grilado, porque esses desgraçados não percebem essa porra toda.
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Ps: Espero que tenham gostado! XD.
PPs: Semana que vem tem algum artigo de opinião bem legal.

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